|
setembro 7, 2015
A presença da ausência por Marcio Doctors
A presença da ausência
Eduardo Berliner é o primeiro pintor a ser convidado a participar do Projeto Respiração. Parecia-me natural não convidar pintores devido às características da Fundação Eva Klabin, que, por ser uma casa-museu, tem suas paredes totalmente preenchidas pela Coleção, não sobrando espaço físico para absorver mais pinturas. E, por isso, tornou-se mais simples trabalhar com instalações.
Para além dessa constatação, há subjacente outra intencionalidade, presente nos dois projetos de longa duração que criei, o Respiração e o Espaço de Instalações Permanentes, na Floresta da Tijuca, que reflete minha formação ao lado de Mário Pedrosa e que norteia minhas opções como curador. Meu objetivo nessas duas propostas é o mesmo: dar continuidade à experiência da ruptura pós-neoconcreto – marco fundador da arte contemporânea no Brasil –, que, ao aproximar arte e vida, rompe radicalmente com o conceito de representação.
Como, então, convidar um pintor, para quem a questão da representação ainda se coloca, mesmo que de outra maneira? Em razão da forte atração que sinto pela qualidade da pintura de Berliner, que mobiliza minha percepção, acreditei que deveria dar atenção à minha intuição e pensei que a experiência de um pintor participar do Respiração seria uma contribuição importante para o projeto, ao mesmo tempo em que me daria a oportunidade de explicitar a mim mesmo os limites do meu pensamento a partir do desafio que a potência de sua obra me propõe, buscando evidenciar questões de seu trabalho que vão para além da representação.
A pintura de Eduardo Berliner trabalha com a técnica da “colagem”, como percebeu Daniela Labra, no primeiro texto produzido sobre o artista, em 2008: "As técnicas utilizadas na composição das obras são diversas, indo desde o desenho de observação minucioso até a colagem. Esta última, porém, é percebida como mote conceitual da produção total de Berliner. Recortes são justapostos a lastros de memórias e estes são semiencobertos por camadas de tintas, de lápis, de outros recortes, de espaços vazios." [1]
Daniela tem razão: a colagem pode ser vista na obra de Berliner como o mote conceitual de sua produção. Eu a relaciono, num primeiro momento, como resultado da proliferação de imagens da realidade do mundo digital, que cria um estado de confluência de forças das mais diferentes origens, possibilitando, para a pintura, a construção de imagens que vão além da história da pintura, ao inseri-la no cruzamento de diferentes formas de expressão e informação, replicando, em certa medida, um dos conceitos do Respiração, que propõe intervenções a partir da ideia de espaços contaminados. Em outras palavras, espaços que já vêm carregados de diferentes camadas de informação, até mesmo conflitantes, como é o caso da Fundação Eva Klabin – uma casa e um museu –, que tem obras de diferentes períodos históricos convivendo numa mesma sala, que conserva a presença ausente de sua fundadora, fazendo com que seja um museu de uma vida, tornando presente, em cada visitante, fragmentos de memória de uma existência não convivida, com seus desejos, conflitos, dúvidas e sonhos. Cruzamento de memórias, de informação e de diferentes áreas de conhecimento e de formas de expressão aproximam a pulsão fundadora do Respiração e as imagens “superpostas” da obra de Berliner, que faz com que sua pintura não tenha qualquer sentimento fetichista ou nostálgico.
Porém, na medida em que fui convivendo com o artista e com a sua riquíssima produção, fui percebendo que a origem da “colagem” na sua obra teria outra dinâmica e preencheria talvez outra função, apesar dela ser evidente e de nos saltar aos olhos, e apesar do fato de o próprio artista e os que escreveram sobre sua pintura se referir à colagem ou à edição de imagens como uma prática constante na sua criação. Mas como em todo pensamento há rachaduras, minha reflexão sobre o tema foi penetrando nesses espaços vazios e fui me questionando, à maneira de Merleau Ponty, se não seria graças às colagens e não apesar delas que poderíamos nos aproximar não do que elas mostram – do que nelas está evidente –, mas do que está implícito nessa fabulação imagética. Em outras palavras, o que me interessa é desmontar o brinquedo para ver como ele funciona, tronando visível o processo de sua geração. Acredito que esse procedimento nos ajudará a perceber o diagrama (para usar uma expressão foucaultiana), que permite trazer à superfície do entendimento o visível e o dizível da obra de Berliner. Se conseguir chegar a bom termo, acredito que perceberemos que a potência de sua obra está na maneira singular com que aborda a “colagem”, muito reveladora dos procedimentos da arte da atualidade.
Suas “colagens” não são como o papier collé do cubismo sintético ou das colagens de Matisse (não há nelas nenhuma preocupação estetizante); não são uma visão de composição por fragmentos; não são justaposição de imagens como ocorre nas telas dos computadores; nem tampouco são imagens oníricas ou inconscientes como nas pinturas surrealistas, mas há algo nelas que as aproximam da pulsão das obras de Magritte e Milliet, que reveste a realidade com silêncios suspensos e situações ensimesmadamente estáticas, que nos indicam o vazio da presença da ausência; ou ainda, da pintura de Courbet, na sua apreensão direta da realidade, como nos indica Alcino Leite Neto³ no seu texto “A pintura inquietante de Eduardo Berliner”. As imagens de Berliner são imagens sonambúlicas de uma realidade surpreendente e inquietante, que contêm todos os indícios da realidade. Por vezes são bem-humoradas, mas, muitas das vezes, trazem o prenúncio de acontecimentos, como se estivessem em suspensão, aguardando a ocorrência de uma situação trágica ou íntima por vir.
Ainda na tentativa de desmontar o brinquedo para ver como ele funciona, fui levado a refletir sobre o museu dos acidentes idealizado por Paul Virilio, cuja proposta era reunir registros da memória dos diferentes tipos de acidentes produzidos pela sociedade contemporânea. Acredito que essa reflexão poderá nos ajudar a pensar a questão da “colagem” de uma maneira diferente. O que é, para mim, a estética do acidente? É a proliferação de imagens que nos bombardeiam cotidianamente (que nos atrai e nos horroriza) em que nos confrontamos com todo tipo de destruição resultante da violência produzida pela guerra, pelo trânsito, pelos conflitos pessoais, pelas intempéries da natureza. A característica fundamental dessas imagens é que, como dois corpos físicos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, o resultado visual é uma imagem de um corpo físico sendo atravessado por outro.
Imaginemos um carro que se choca contra uma árvore. A imagem resultante é um híbrido entre uma estrutura maquínica e uma estrutura orgânica, que não é nem mais carro nem mais árvore. É um terceiro estado em que a composição é dada pela falta de partes de cada um dos elementos que a compõem. É uma imagem em que a presença da ausência de partes do carro e da árvore se dá por subtração e não por soma, como ocorre na colagem. Podemos imaginar, então, que essas imagens são o resultado de estados híbridos e metamorfoseantes, como se estivesse sendo gerada uma “terceira natureza”, cuja matriz é a falta tornando-se presente.
Para clarear melhor a questão, gostaria de citar a resposta dada por Berliner em uma entrevista realizada por Wang Fang, em 2013, para a revista Art World China, quando perguntado como ele tratava a relação entre o humano e o animal:
Assim como para muitas crianças, meu primeiro contato com a morte se deu através de um animal querido. O cachorro que considerava meu, um grande fila brasileiro dourado, teve câncer e precisou amputar a pata traseira. A caminho do veterinário minha mãe tentou explicar o ocorrido, mas ao ver o animal tive minha primeira lição no que diz respeito ao abismo existente entre a compreensão oral de um fato e a coisa em si. Quando vi o animal enorme sem a pata de trás, não consegui acreditar nos meus olhos. Pensando com distanciamento, percebi que talvez esta tenha sido minha primeira experiência visual com a ideia de colagem. O poder da ausência e a violência do corte. Onde havia perna, restou uma área desprovida de pelo e uma cicatriz desenhada com linha cirúrgica preta.
O que me chama a atenção nesse depoimento é o fato de Berliner declarar que essa talvez tenha sido sua primeira experiência visual com a ideia de colagem e que ela esteja relacionada exatamente com o poder da ausência e não com o poder da presença. Em outras palavras, a colagem para o artista não é provocada pelo que é adicionado, como no papier collé, por exemplo, mas pelo que desaparece quando uma imagem é interceptada por outra; tal como em um desastre, em que a imagem do mundo físico é reconfigurada pelo que foi perdido ou pela presença da ausência do que era antes, criando uma polifonia de imagens que dá expressão à forma como metamorfose.
Outro dado importante desse depoimento é quando ele menciona o abismo entre a compreensão oral de um fato e a coisa em si. Esse vazio é responsável por impulsionar a imaginação criadora e a enorme capacidade de fabulação do artista. De fato, existe esse abismo, que Foucault apresenta como uma irredutibilidade entre as palavras e as coisas. Imagens e palavras não se comunicam diretamente entre si, como tendemos a imaginar, mas, ao contrário, uma não pode ser reduzida a outra; são como duas pedras que ao se chocarem provocam uma centelha, que nos ilumina a realidade. Portanto, por haver um gap entre o mundo das palavras e o mundo das imagens, o não dito pelas palavras é expresso nas coisas do mundo, assim como o que é silenciado pelas ações e pela materialidade do mundo é expresso pelas palavras. Apesar de não ser possível reduzir uma a outra, só percebemos o diagrama sobre o qual a realidade se sustenta quando fazemos ver por meio das palavras e quando conseguimos ler as coisas e suas imagens. Essa conjunção é que permeia e o que agencia o sentido de uma época.
No caso de Berliner é a consciência da intransponibilidade entre o dizível e o visível (entre a compreensão oral e a coisa em si) que fará que ele busque outra sintaxe visual, cuja narrativa vai impregnar a imagem não mais pela ideia da forma como fôrma, mas através da forma que se transmuta constantemente pela metamorfose. Suas pinturas são guiadas por um olhar que procura nos apresentar a imagem na sua incompletude, tal como a percebemos, pela simples razão que uma imagem esconde sempre o que está por detrás dela. Suas pinturas, então, não usam, de fato, o artificio tradicional da colagem, mas nos apresentam aquilo que realmente vemos quando vemos. Isto é, uma imagem encobrindo a outra. Ao apresentar a imagem dessa forma, ele nos indica a radicalidade da intransponibilidade entre as palavras e as coisas. São puras associações imagéticas que não permitem a entrada da palavra como costura de sentido. Ele nos apresenta pela sua pintura a radicalidade do visível e é por isso que elas têm essa aparência fantástica.
Quando percebi que a questão de Eduardo Berliner na pintura era a radicalidade do visível, entendi, então, o que me atraía na sua obra: diante da realidade e do real não há recuo possível. Não há transcendência. Essa questão me é muito próxima na medida em que eu acredito que a potência da arte resida nesse fato. Foi isso que a ruptura pós-neoconcreto nos trouxe. Em outras palavras, a arte é em potência; não representa nada: é expressão da radicalidade do real, que é a via que temos para nos aproximar do caos, que é o magma que alimenta a poesia: pura imanência.
A Fundação Eva Klabin foi um território fértil para o trabalho que Eduardo Berliner pôde realizar no Projeto Respiração. A possibilidade de atravessamentos de tempos e imagens permitiu que seu olhar fosse descobrindo incessantemente novas formas que iam sendo formadas pela metamorfose que seu olhar é capaz de construir, erigindo uma polifonia de imagens que ressoam ao longo do percurso de sua intervenção. Nenhum artista conseguiu aproximar-se tão intensamente da história das imagens que é apresentada pela coleção. Percorrer a exposição de Berliner é rever os múltiplos detalhes do acervo que nos passam despercebidos. O que apresenta nessas pinturas e esculturas são extrações e afecções da coleção ou remissões a outras obras já realizadas, que são memórias despertadas pela sua intensa convivência com o acervo da Fundação Eva Klabin. É incrível poder percorrer o circuito expositivo da fundação através de sua experiência e ver como as obras são transmutadas em novas formas que podem nos revelar, no mais singelo vaso, uma violência avassaladora ou ainda nos surpreender com a familiaridade de animais, que descobrimos estar espalhados nos desenhos dos tapetes, ou personagens das pinturas que retornam em um novo contexto.
Poderia me estender longamente sobre como os “encobrimentos” e as “revelações” do artista estabelecem relações polifônicas com o acervo, criando um território de metamorfoses; mas acredito que o mais importante é percorrer sua intervenção nos permitindo ser atentos, assim como ele foi, ao visitar várias vezes a fundação, e permitir-se simplesmente ver. A maior potência do seu trabalho é seu poder arrebatador de nos lançar diretamente em contato com a crueza do visível. Essa maneira direta de relacionar a imagem ao visível abafa a representação no que ela tem de desviante da intensidade do caos, que é o que permeia a apreensão poética do mundo, e nos permite atravessar a realidade e descobrir que o mistério é transparente – lembrando Octavio Paz – e, por isso mesmo, ele é a própria realidade manifesta. Por essa razão não há representação, ou melhor, tudo é expressão. Esse é o fulcro que me interessa na arte e Berliner consegue manifestá-lo ao criar uma sintaxe visual que não se sente tributária às palavras porque, como nos indica Daniela Labra, ele manifesta uma “[...] vontade consciente de desafiar novas possibilidades na difícil prática de retornar à pintura para conseguir tocar no mundo”. Eu acrescentaria: a difícil tarefa de tocar na realidade através de imagens que carregam consigo a presença da ausência.
[1] LABRA, Daniela. “Colagens”. Texto de parede da exposição realizada na Galeria Durex, São Paulo, 2008.