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setembro 3, 2015
O que ainda existe? por Daniela Bousso
O que ainda existe?
A série fotográfica que compõe a exposição Hominini, de Lucas Lenci, nos coloca diante de múltiplas possibilidades de leitura. Em um primeiro nível, podemos logo apreender mundos distintos, constelados no território das paisagens. Sejam elas urbanas, de interiores ou naturais, elas incluem necessariamente os seres humanos e nos falam de universos silentes e solitários, mesmo que estes homens, por vezes, sejam captados coletivamente. Quando sós, ao protagonizarem os frames, estes seres nos dão a sensação de melancolia; esta cresce aos nossos olhos já inquietos, diante do impacto psicológico que as figuras anônimas emanam. Impacto este e inquietação que encontramos também nas imagens do filme “Melancholia” (2011), de Lars Von Trier.
Em uma segunda mirada, podemos já distinguir duas genealogias de imagens na mostra. A primeira faz-se representar por uma série de três fotos em preto e branco, criadas a partir da divisão do espaço fotográfico em quatro plataformas, aonde aparecem muros, cercas, paredes, que determinam diferentes espaços na superfície das fotos, são divisões geométricas, que aludem a uma apreensão do tempo a partir de instantâneos colocados em relação. Este tempo comprimido em quatro tempos, por quatro plataformas, nos fala de uma solidão ancestral, marcada de forma mais incisiva pela alusão a uma estrutura piramidal em segundo plano na foto (nome da foto, Lucas), a qual designa um conjunto perspético, com planos de fuga.
Mas não é só a presença das piramides que se repetem no espaço da foto que determina estas diferentes temporalidades. As outras duas fotos também são marcadas pela multiplicação dos planos e pela repetição das estruturas dos muros, cenários de passagem e de evoluções da espécie humana ainda existente; é isto que resgata o sentido da palavra Hominini, do qual trataremos mais adiante.
Nestas três fotos podemos, ainda, perceber uma alusão à história da fotografia, a partir da evocativa das lições do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), com seus estudos sobre o movimento a partir do “Zoopraxiscópio”, dispositivo de observação da vida em exercício. Vida + práxis é = ao exercício da vida humana em grego, eis a chave para lermos esta série de trabalhos de Lenci.
Na segunda família de imagens, Lenci apresenta mais quatorze fotos que abrem outras duas camadas de leitura. Na primeira camada, o artista revela as suas referências na história da fotografia e da arte: podemos perceber o seu olhar atento a produções artísticas instigantes da arte moderna, como por exemplo a fotografia de Harry Gruyaert, ou a pintura de Edward Hopper (1882-1967). Do primeiro, o artista traz os jogos de luz e sombras, as penumbras e os claro-escuros, que por vezes emanam luminosidades dramáticas e artificiais. Do segundo, transparecem nitidamente o senso de espacialidade e o vazio, os silêncios e a solitude humana.
Já na segunda camada de leitura, percebemos a sua relação com a fotografia e com a arte contemporânea. Homens, mulheres, velhos, crianças, a sós ou em coletivos, revelam um olhar voyeurístico do fotógrafo, que pode nos fazer lembrar das capturas e dos instantâneos roubados e intimistas das lentes de Nan Goldin, por exemplo. Ou, por fim, que pode nos propor um mergulho, uma viagem por espaços insondáveis e desolados, na trajetória de vulnerabilidade do caminhante solitário, silencioso, mas que ainda existe, resiste e se multiplica no absurdo ambiente da atualidade.
Na biologia, Hominini refere-se à evolução humana, à preservação da espécie, ao oposto do extinto, ao que ainda está em existência. É disto que tratam estas imagens de Lenci, que nos chamam a atenção por referirem-se à vida e à subjetividade nos nossos dias, ao que ainda existe.