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agosto 16, 2015
O energúmeno por Valquíria Farias
O energúmeno
VALQUÍRIA FARIAS
Os desenhos são auto-retratos [1]. Neles, uma reação enérgica é investida contra nove representantes de instâncias do poder político-social e religioso. A reação. Uma figura, a vítima, empunha agressivamente uma arma contra o seu opressor, a outra figura. O realismo cruel de cada cena entre esses dois personagens é indicativo do destino fatal que um terá. Em uma cena, o opressor está sentado em uma cadeira com as mãos e o corpo amarrados, enquanto a outra figura segura violentamente seus cabelos e, com uma faca em seu pescoço, imobiliza-o. Em outras, o opressor está de joelhos, com um revólver apontado diretamente para sua cabeça, ou está com as mãos erguidas, frente a frente com a vítima, ou de costas para ela, com as mãos para o alto, ou, ainda, está sentado em um banco, tendo as mãos fortemente amarradas e para trás de seu corpo, enquanto a vítima, cautelosa, aponta-lhe a arma de certa distância. Sucessivamente... auto-retrato matando George W. Bush, Luiz Inácio Lula da Silva, Bento XVI, Eduardo Campos, Fernando Henrique Cardoso, Jarbas Vasconcelos, Ariel Sharon, Elizabeth II e Kofi Annan [2]... cada um desses representantes hegemônicos como um “programa de extermínio”. No título dos trabalhos, é legível essa vontade do artista. Execução sumária em curso. Auto-retrato matando o mau dirigismo e os desmandos dos poderes estabelecidos.
Do político [3], estão imbuídos os novos trabalhos. Gil Vicente emerge radicalmente de assuntos que tratam da condição humana, da subjetividade que a envolve [4], e penetra nos espaços intrincados do mundo visível, contaminado de acontecimentos político-sociais condutores do comportamento do homem enquanto sujeito da sociedade em movimento. Incisivos. Os desenhos são em grande dimensão, nos quais prevalecem aspectos de contenção e rigidez no uso dos materiais e na ação empreendida. Objetivo. Não poderia ser agora de outro modo o embate com os elementos desse mundo exterior que o incomodam intermitentemente. Não que antes estivesse alheio aos fatores constituintes do sistema social e de seus efeitos na organização do lugar onde vive. São, essas questões, colocadas de alguma maneira, sem dúvida implicitamente, em outros trabalhos que realizou.
Sentidos internos e externos estão interligados na compreensão desses trabalhos [5]. Trata-se de um ato isolado, “um expurgo” do artista contra os modelos políticos de dominação que organizam as sociedades, e, ao mesmo tempo, de uma tentativa de alertar “as pessoas contra as ilusões” [6]. Trata-se de uma tomada de consciência [7], que não necessariamente espera ser correspondida, e, ao mesmo tempo, de uma vontade de comunicar [8], de provocar o público e acender reações ambíguas. Repulsa. Empatia. Indiferença. Ou o que for. Não importa, na verdade, um entendimento unívoco ou diferenciado de cada um dos sentidos que movem o artista, tanto melhor dos mecanismos que ele utiliza como dispositivos imediatamente transgressores de regras — as obras. O embaralhamento das relações indivíduo/sociedade (do indivíduo na sociedade capitalista contemporânea) permite, ainda que assim, uma interpretação analítica, mas não-dogmática, no âmbito da investigação sociológica, dos elementos constitutivos que regem a vida em sociedade — daquilo que é público e privado, universal e particular, do dentro e do fora na experiência humana [9] —, atenta ao caráter de reciprocidade das operações que ocorrem entre os diversos setores dessas relações. Desse modo, tudo o que é interno e externo à vontade do artista como experiência da realidade está inequivocamente realçado em sua prática artística [10]. Nos trabalhos, a operação empregada por Gil Vicente apenas com carvão e papel — ao trabalhar o traço com precisão e detalhamento para deixar a sua imagem e a dos nove líderes públicos o mais próximo possível da verdadeira — é, assim, uma narrativa amparada na complexidade de fatos reais, sintomáticos do sistema social no qual está inserido [11].
Para não deixar que outras situações o desviem de sua intenção, a vítima está só com os seus opressores, e somente uma linha desenha sutilmente os espaços-tempos prováveis em que se encontram [12]. Pois que sejam estes quaisquer lugares-comuns desvendados pela atitude perspicaz do leitor a cada cena. A vítima está concentrada em sua realidade infeliz, invadida que foi pelas figuras atrozes dos opressores, os quais passaram a governá-la com tirania ao planejarem tomar toda a substância material, ética e espiritual que lhe dá significado. Mas, ainda assim, a vítima reage transformando o que lhe sobrou em armas para a sua defesa e vingança. Então ameaça esses opressores, inimigos de sua conduta moral, de seus costumes, de sua cultura e história. Parece não haver outra forma de conquista senão aquela dada pela violência [13], virulência catártica, pelo ato possesso de aniquilamento dos poderes instituídos e (por que não?) imposição de outros. Os opressores que estão aí (decalcados na forma dos desenhos realísticos e denunciadores do artista) sabem que o diálogo dissimulado é o único jeito de conter essa ameaça. Mas a vítima, que “saiu do sério”, mostrando-se indignada em atitudes e gestos, está consciente de que, se ouvi-los, sua vontade será eclipsada pelo poder de dominação que têm para devolvê-la novamente ao mundo de alienação onde esteve aprisionada durante tempos.
O estado da vítima da opressão no nível sociopolítico das sociedades globalizadas é o estado dito irremediável dos sujeitos cidadãos que nela residem. A globalização que se dá no nível da informação multifragmentada em sentidos torna também multifragmentada a comunicação entre esses cidadãos. Por esta via, seus posicionamentos são ações isoladas, microações que ocorrem primeiro no habitat especializado. Sua circularidade em um campo maior depende rigorosamente da força unificadora e, portanto, comum que podem conter as mensagens que projetam nos canais híbridos dessa comunicação. O cidadão é, assim como está escrito nos desenhos de Gil Vicente, o energúmeno [14] que, situado no campo de sua “resistência reativa” [15], persiste violentando impetuosamente as convenções (as suas mesmas, as da família, do Estado, da sociedade), confrontando-as com as informações perturbadoras do seu estado de vítima das injustiças sociais generalizadas, das formas de governo e das guerras, corrupção política e econômica, dos preconceitos e da violência. “Do mal do mundo” [16]. O cidadão é o energúmeno porque, mesmo impedido, esbraveja uma denúncia do mundo, praticando o seu ato solitário com a convicção de que possui uma liberdade construída na base de sua consciência (política). Por outra via, é energúmeno porque contraria o status quo ao, abertamente, coletivizar sua ação no instante em que a manifesta publicamente, criando um território comum inevitavelmente partilhado com outros sujeitos da História.
A ação empreendida nos desenhos por Gil Vicente, ao retratar-se como o que mata os poderes do mundo, pode ser entendida como metáfora de uma vontade maior e subjetiva dos indivíduos sociais, vítimas autênticas da desordem do mundo. O artista, que também se assume vítima, é o que encarna essa vontade no interior de sua prática artística, tornando-a vetor de transmissão da crise gerada por essa desordem. Ocorre que, nos desenhos, cada sentença acionada corresponde a vontades de reivindicação e revolta dos cidadãos, constantemente afetados pelo poder de seus opressores.
Em sentido oposto ao sonho de transformação das sociedades que as práticas artísticas modernas buscavam instaurar através de atitudes políticas engajadas, a série Auto-retratos matando George W. Bush, Luiz Inácio Lula da Silva, Bento XVI, Eduardo Campos, Fernando Henrique Cardoso, Jarbas Vasconcelos, Ariel Sharon, Elizabeth II e Kofi Annan não parte de nenhum projeto político defendido pelo artista, tampouco apresenta, em sua escrita, vocação alguma para instaurar idéias nefastas de libertação dos sujeitos da dominação. Na verdade, interpreta, nos vários momentos tensos de sua narrativa, sintomas velados de uma crise que opera níveis cada vez mais destruidores da condição humana no mundo. Cúmplices ou testemunhas dessas ações, neste momento, são os olhares diversos do público.
NOTAS
[1] Feitos em carvão sobre papel e medindo 200 cm x 150 cm cada.
[2] Gil Vicente fez vários estudos de rostos desses dirigentes hegemônicos a partir de imagens retiradas da Internet. Em seguida, construiu todo um repertório para uma “cena de execução”, na qual ele era o seu próprio personagem, e os personagens líderes do poder eram representados por pessoas geralmente muito próximas a ele. As nove cenas de morte foram registradas em fotografias que serviram de referência à elaboração do desenho em papel maior.
[3] A dimensão política nos desenhos de Gil Vicente talvez guarde alguma relação com a noção de política como prática de liberdade do indivíduo na sociedade, defendida por Arendt. In ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
[4] Com os desenhos da série Sessenta Cabeças, produzidos na década de 1990, e da série de Auto-retratos Rorschach, que apresentou na 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2005, Gil Vicente demonstra claro interesse pelo isolamento da figura humana em um ambiente totalmente inventado por ele, em que a comunicação parece ocorrer apenas através das vias do pensamento e da reflexão psicológica sobre a existência.
[5] Em comentário feito pelo artista brasileiro Eduardo Frota [novembro de 2005], do qual também compartilha este texto, em suas linhas centrais, esses sentidos são originados “de um incômodo pessoal de Gil Vicente, que se acentua nos campos social e político”.
[6] Declaração do artista. CAVANI, Júlio. Gil Vicente radicaliza o traço. Diário de Pernambuco, Recife, 14 de setembro de 2005.
[7] Neste caso, a tomada de consciência diz respeito à atitude não utópica do artista com relação a quaisquer projetos políticos de transformação social.
[8] “Eu, como cidadão, usei o canal de comunicação que eu tenho, que é o meu trabalho, para externar e tornar público um momento pessoal meu”. Idem, nota 6.
[9] No sentido weberiano, as relações humanas só podem ser apreendidas quando o são também os sentidos dados às suas ações, que são dispositivos de significações sociais. Weber, Max. Metodologia das ciências sociais, parte 2. São Paulo: Cortez Editora, 1992.
[10] Para o filósofo Jacques Rancière, as formas de artes são “formas de inscrição do sentido de comunidade, que, por sua vez, definem a maneira como as obras fazem política, quaisquer que sejam as intenções que as regem, os tipos de inserção social dos artistas ou o modo como as formas artísticas refletem estruturas ou movimentos sociais.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p.18-19.
[11] “...queria fazer um comentário real, como se fosse um documento ficcional.” Idem, nota 6.
[12] A obra em seu sentido estético é o “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência.” A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p.16.
[13] Para Suely Rolnik, a violência como política de resistência no jogo de forças antagônicas da lógica capitalista no mundo contemporâneo, no caso da vítima, é uma reação à violência de seu algoz. A violência, em sua versão negativa, é “hegemônica em nossa contemporaneidade”, à medida em que é “amplamente propagada pelo capitalismo mundial integrado” através da mídia, diz a autora. Por outro lado, Rolnik aponta que o esgarçamento da figura da vítima pelo indivíduo social constitui-se em uma necessidade vital do mesmo, que deseja escapar da lógica perversa de subordinação. ROLNIK, Suely. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. Ars - Revista da ECA/USP, vol.1, n.2, São Paulo, 2003.
[14] Em sua crítica da modernidade, a respeito da pintura retiniana, Marcel Duchamp dizia: “o pintor se integrou completamente na sociedade atual, já não é um pária.” É possível uma aproximação de sentidos entre essa assertiva de MD, que segundo Paz “prefere a sorte do pária à do artista assimilado”, e a idéia do energúmeno defendida neste texto. Com significados e abordagens diferentes, entretanto, ambas compartilham do mesmo desejo de rejeição a quaisquer situações impostas pela sociedade. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.58-59.
[15] ROLNIK, Suely. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. Ars - Revista da ECA/USP, vol.1, n.2, São Paulo, 2003.
[16] Expressão usada por Gil Vicente para referir-se aos problemas políticos e sociais no mundo atual.