|
agosto 16, 2015
Trecho da introdução de A Ilusão Especular por Arlindo Machado
AGENDA SP Hoje 17/08 às 19h30 @ Livraria Madalena: Arlindo Machado lança edição revisada de A Ilusão Especular: uma...
Posted by Canal Contemporâneo on Segunda, 17 de agosto de 2015
A Ilusão Especular: uma teoria da fotografia (Segunda edição revisada)
ARLINDO MACHADO
Recolocações
(À guisa de introdução)
Levando a sério a anedota de Blow up, o fotógrafo-protagonista Thomas, num relance de sua trajetória frenética e vazia pelaswinging London dos anos 1960, descobre, por acaso, entre as fotos de um par romântico a imagem de um cadáver misteriosamente inserida no cenário idílico e revelada pelas ampliações fotográficas. O filme de Michelangelo Antonioni, em linhas gerais, é o relato dessa descoberta espantosa, como se uma realidade insuspeitada pelos olhos negligentes do protagonista fosse de repente resgatada pela câmera, no limite da própria credibilidade do fotógrafo. À medida que Thomas ia ampliando cada vez mais seus negativos, toda uma dimensão invisível do cotidiano se impunha de forma surpreendente, revelando por detrás das formas familiares do mundo uma realidade outra que só a intervenção do aparato fotográfico pôde fazer aflorar. É muito curioso comparar essa ideia central de Blow up com o percurso de um pequeno filme de Marcelo Tassara denominadoAbeladormecida: entrada numa só sombra, no qual uma foto familiar de um casal de favelados é sucessivamente ampliada até perder todos os seus contornos figurativos. Neste último caso, a situação antonioniana é invertida completamente: quanto mais o olhar se aproxima da foto e amplia seus detalhes, na procura desesperada de uma realidade sufocante que se supõe estar atrás do verniz asséptico da cena familiar, mais e mais a cena se desmaterializa e perde seu referencial simbólico, reduzindo-se progressivamente a ranhuras e manchas despersonalizadas até resultar apenas na granulação característica da ampliação fotográfica. No filme de Tassara, o exame penetrante e minucioso de uma imagem aparentemente plena de ilações, ao menos no âmbito das convenções figurativas, choca-se cada vez mais com a opaca materialidade da fotografia e os limites de um código enganoso na sua transparência fantasmática.
Mesmo correndo o risco de uma abreviação grosseira, poderíamos dizer que a problemática desses dois filmes resume o núcleo das questões que este volume tenta enfrentar. Toda uma tecnologia produtora de imagem figurativa vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada há pelo menos cinco séculos, no sentido de possibilitar uma reprodução automática do mundo visível – “automática” quer dizer: livre das codificações particulares e das estilizações pessoais de cada usuário. Essa tecnologia goza do prestígio de uma objetividade essencial ou “ontológica”, para usar o termo com que os seus próprios apologistas a têm caracterizado. Ela reivindica para si o poder de duplicar o mundo com a fria neutralidade de seus procedimentos formais, sem que o operador possa jogar aí mais que um mero papel administrativo. Entretanto, basta um mergulho crítico na história de seus desdobramentos técnicos para que possamos verificar nitidamente que a indústria da figuração automática só consegue “reproduzir” ou “duplicar” uma realidade que lhe é exterior porque opera com concepções de “mimese”, “objetividade” e “realismo” que ela própria perpetua. Ou, para usar a formulação mais precisa de Pierre Bourdieu “conferindo à fotografia a patente do realismo, a nossa sociedade não faz mais que se confirmar ela própria, na certeza tautológica de que uma imagem construída segundo a sua concepção de objetividade é verdadeiramente objetiva”.
O que nós chamamos aqui “ilusão especular” nada é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelador. A fotografia em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como o “espelho do mundo”, só que um espelho dotado de memória. Certamente, a superfície prateada e a base rígida do daguerreótipo contribuíram para essa analogia. Já na aurora de 1839, Jules Janin, explicando o que era a nova invenção, conclamava ao leitor: “imagine um espelho que pode reter a imagem de todos os objetos que ele reflete e você terá a ideia mais completa do que é o daguerreótipo”. Ora, se é verdade que as câmeras “dialogam” com informações luminosas que derivam do mundo visível, também é verdade que há nelas uma força mais formadora que reprodutora. As câmeras são aparelhos que constroem as suas próprias configurações simbólicas, de forma bem diferenciada dos objetos e seres que povoam o mundo; mais exatamente, elas fabricam “simulacros”, figuras autônomas que significam as coisas mais que as reproduzem. Nos domínios da figuração automática, o mundo imediato das impressões luminosas passa a ser trabalhado pelo código: isso quer dizer que, em vez de exprimir passivamente a presença pura e simples das coisas, as câmeras constroem representações, como de resto ocorre em qualquer sistema simbólico. Porém, com uma diferença fundamental, que constitui o alvo principal de nossas investigações: uma vez que a imagem processada tecnicamente se impõe como entidade “objetiva” e “transparente”, ela parece dispensar o receptor do esforço da decodificação e da decifração, fazendo passar por “natural” e “universal”, o que não passa de uma construção particular e convencional. É exatamente nesse ponto que as mídias mecânicas e eletrônicas do nosso tempo se tornam o terreno privilegiado das formações ideológicas: o fetiche de sua “objetividade”, no qual se acham mergulhadas massas inteiras de espectadores, é a máscara formal que oculta a intenção formadora que está na base de toda significação. Por essa razão, este trabalho, dedicado ao exame do código que opera no mais influente sistema figurativo de nosso tempo, é também uma crítica dos seus suportes ideológicos multiplicados num repertório infinito de crendices populares e teorias eruditas, de modo que se possa esclarecer por que não podem existir sistemas significantes neutros nem inocentes. Entre a verdade oculta que Blow up revela e a máscara ilusionista que Abeladormecida desvela há uma fronteira mal conhecida e pouco desbravada, que corresponde justamente àquela complexa trama de motivações que traça o liame entre as formas simbólicas e o mundo. [...]
Arlindo Machado é professor do Dept. de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo. Seu campo de pesquisas abrange o universo das chamadas "imagens técnicas", ou seja, daquelas imagens produzidas através de mediações tecnológicas diversas, tais como a fotografia, o cinema, o vídeo e as atuais mídias digitais e telemáticas. Sobre esses temas, publicou os livros Eisenstein: Geometria do Êxtase (Brasiliense), A Ilusão Especular (Brasiliense), A Arte do Vídeo (Brasiliense), Máquina e Imaginário: o Desafio das Poéticas Tecnológicas (EDUSP), El Imaginario Numérico (Eutopias, Valência), VideoCuadernos (Nueva, Buenos Aires), Pré-cinemas & Pós-cinemas (Papirus), A Televisão Levada a Sério (Senac), O Quarto Iconoclasmo (Contracapa), El Paisaje Mediático (Rojas, Buenos Aires), Os Anos de Chumbo (Sulina), O Sujeito na Tela (Paulus), Arte e Mídia (Zahar), além de inúmeros artigos em revistas especializadas. É também co-autor de Os Anos de Autoritarismo: Televisão e Vídeo (Zahar), Rádios Livres: a Reforma Agrária no Ar (Brasiliense), Made in Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro (Itaucultural) e Pantanal: A Reinvenção da Telenovela (EDUC). Foi crítico de fotografia e vídeo na Folha de São Paulo durante o período 1984-86. No terreno das artes, foi curador das exposições Arte e Tecnologia (MAC, São Paulo, 1985), Cinevídeo (MIS, São Paulo, 1992, 1993), A Arte do Vídeo no Brasil (MAM, Rio de Janeiro, 1997), Arte e Tecnologia, A Investigação do Artista, Made in Brasil e Emoção Art.ficial II (Instituto Cultural Itaú, São Paulo, 1997, 2001, 2003, 2004) e El Cuerpo como Interface (FT, Buenos Aires, 2007). Organizou várias mostras de arte eletrônica brasileira e internacional para eventos como Getxoko III (Bilbao), Arco (Madri), ArtoftheAmericas (Albuquerque), BrazilianVideo (Washington), Medi@terra 2000 (Atenas), L.A. Freewaves (Los Angeles), ImageForum (Tóquio), Plataforma 2006 (Puebla), Visionários (América Latina) e Transitio_mx (México). Participou do corpo de jurados de festivais tais como Videobrasil (São Paulo), BHZVideo (Belo Horizonte), Bienarte (Córdoba, Artes Electrónicas (Buenos Aires), Cenart (México) e Ícaro (Guatemala). Dirigiu seis filmes de curta-metragem em 16 e 35 mm e três trabalhos de multimídia em CD-ROM. Recebeu o Prêmio Nacional de Fotografia da FUNARTE, em 1995 e o Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia em 2007.
FICHA TÉCNICA
Ilusão especular: Uma teoria da fotografia
Arlindo machado
13 x 20 x 1,5 Cm
184 páginas
ISBN: 9788584520329
Capa: Brochura
2015
R$ 49,00
Editora GG Brasil