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agosto 5, 2015

Coisas sobre outras coisas por Fernando Burjato

Coisas sobre outras coisas

FERNANDO BURJATO

Apresentação do livro Conversas sobre arte (e-book)

Ver arte costuma ser bom; ler sobre arte, nem sempre. Talvez porque muitos textos pareçam, no começo, falar de arte, e acabem tratando de outra coisa. Aí, lemos e assistimos às palavras se distanciando daquilo que a gente vê nos museus, galerias ou ateliês e indo longe, em busca de ancoragem num conceito filosófico, na política, na psicanálise, na sociologia (de botequim ou não) – fora da presença áspera dos objetos. Por isso, certas obras, menos palpáveis ou, vá lá, conceituais, rendem prosas mais coerentes, mais certeiras: textos ficam mais à vontade com outros textos, sem a distância complicada entre palavra e coisa.

Nas entrevistas com artistas, em geral, encontramos mais frescor. Há uma sensação de proximidade com as obras, um pouco da atmosfera de ateliê, diferentemente dos textos teóricos. Talvez porque a dinâmica entre perguntas e respostas, as pausas, a aparência de espontaneidade evidenciem o que há de arbitrário e de incompleto em qualquer conversa (e, talvez, o que há de arbitrário e incompleto nas obras de arte, diferentemente do verniz de certeza das teorias). Os diálogos entre Marcel Duchamp e Pierre Cabanne, entre Francis Bacon e David Sylvester [1] já se tornaram referências inevitáveis para os admiradores da arte do século XX e devem ser, se não as mais profundas, ao menos as mais prazerosas leituras sobre esses criadores tão diversos [2]. Sabor parecido encontramos em publicações que apresentam conversas com Matisse, Jasper Johns, Daniel Buren, Richard Serra, Gerhard Richter [3], assim como os muitos volumes de entrevistas realizadas pelo curador suíço Hans Ulrich Obrist [4].

O problema em se ouvir as vozes dos artistas não está na inabilidade de muitos deles com o verbo, pois isso também pode ser revelador. Está na armadilha de acreditar no que eles dizem, em pensar que nas suas palavras – mais do que em suas obras – encontraremos suas expressões mais profundas. Para muito longe da pintura de Cézanne já se voou, por se levar tanto a sério sua frase sobre o cilindro, a esfera e o cone [5]. Considerar a fala de um pintor sobre seus quadros como realidade é o mesmo que afirmar que a imagem que tenho de mim é mais verdadeira do que a que têm meus alunos, meus amigos ou meu dentista.

O artista certamente não possui o olhar mais crítico sobre seu próprio trabalho – por lhe faltar distância –, mas, melhor do que qualquer outra pessoa, conhece a história de como tudo foi feito, sabe que material foi processado para que a obra existisse [6]. E aqui não me refiro apenas ao que é concreto: tinta cerâmica, metal, máquina fotográfica, mas àquilo que circula pelo ateliê: pensamentos, história, a própria vida.

É à vida, dedicada à arte, entre o ateliê (ou a galeria) e a rua, que as entrevistas realizadas por Juliana Burigo e Dayana Zdebsky de Cordova, publicadas aqui, mais se referem. São conversas com um crítico, um galerista e sete artistas [7] residentes em Curitiba. Há poucas referências a obras específicas, sobre como este ou aquele objeto foram feitos, embora suas presenças sejam percebidas. O ponto de partida da maioria das entrevistas publicadas aqui é, no entanto, falar sobre Arte, e aí se acaba, ainda que meio sem querer, discorrendo sobre outras coisas, estas em minúscula, mas não por isso de menor interesse: o processo de trabalho, o mercado, a universidade, a vida na capital paranaense. As conversas, em sua maioria, começam sobre arte – ou sobre teoria da arte – e terminam sobre artistas [8].

No escurinho
Carina: A gente vive no escurinho aqui.
Juliana: Porque não tem foco, não tem foco de mercado.
Carina: Não tem. A gente está bem, acho Curitiba um ótimo lugar para se produzir arte.
Dayana: Por quê?
Carina: Porque convida a uma introspecção maior.

Um questionamento recorrente nas entrevistas é como ganhar a vida sendo artista plástico em Curitiba. A possibilidade de pagar suas contas somente com a venda de trabalhos é um assunto pouco discutido em público e uma inquietação para muitos artistas, não só curitibanos. Nas respostas, encontramos menções a outras ocupações – na maioria dos casos, o cargo de professor numa universidade pública.

Vive-se de arte na capital paranaense, embora não necessariamente apenas do comércio de obras. Como no resto do Brasil, como em muitos outros lugares. Menos citadas, mas presentes nas conversas, estão as leis municipais de incentivo à cultura – desdobramentos do mercado, como aponta Dayana na entrevista com Geraldo Leão. Desdobramentos que viabilizam, aliás, a existência deste livro.

Os artistas fazem seus trabalhos, e em Curitiba há quem os venda e quem os compre. Na cidade não se fazem sentir, entretanto, as cobranças ou a ansiedade do mercado de arte. Talvez este seja mais um empecilho para que se encare o artista como profissional; isso, contudo, pode favorecer a liberdade e o debate. O escurinho, como chama Carina Weidle, chama à introspecção. Mas introspecção não é o mesmo que isolamento: quem conhece o meio das artes visuais na cidade sabe que, mesmo à meia-luz, muito se discute e se critica, não raramente com ânimos exaltados (como podem ser briguentos, os curitibanos!).

A introspecção, o debate (provavelmente porque se encontra, na universidade, bons artistas como professores) e leis de incentivo certamente contribuem para que se produza arte de qualidade em Curitiba. Talvez tudo isso ocorra pela dificuldade em se ter êxito como artista na cidade – seja lá o que isso queira dizer. Se não temos clareza sobre o lugar da arte, somos convidados a pensar no que ela pode ser, em vez de no que ela é, e assim mantemos a cabeça – e a própria arte – em movimento. Se a figura do artista de sucesso não existe como um modelo a ser alcançado, se isso não é tido como possível, há que se procurar outra coisa para fazer – quem sabe até arte.

NOTAS
[1] CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 1998.
Há outro livro de entrevistas com o pintor britânico, que também pode ser encontrado em português: MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

[2] Como, talvez, o melhor livro sobre o cinema de Hitchcock seja o volume de entrevistas a François Truffaut: TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[3] Cito aqui alguns livros de entrevistas com artistas, alguns em português e outros disponíveis apenas em inglês. Certamente estou esquecendo ou ignorando outros importantes:
MATISSE, Henri. Escritos e reflexões sobre arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BUREN, Daniel; DUARTE, Paulo Sergio (ed.). Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos (1967-2000). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001.
JOHNS, Jasper; VARNEDOE, Kirk (ed.) Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996.
SERRA, Richard. Writings/interviews. Chicago: University Of Chicago Press, 1994.
RICHTER, Gerhard. The daily practice of painting. Chicago: The MIT Press, 1995.
Em português, há um livro recente de entrevistas com o artista inglês David Hockney:
GAYFORD, Martin. Uma mensagem maior: conversas com David Hockney. São Paulo: DBA, 2011.
Há também quatro livros / entrevistas publicados, há pouco, com o poeta e crítico Ferreira Gullar e com os artistas Jac Leirner, Jesús Soto, e Carlos Cruz-Diez:
NELSON, Adele. Conversa com Jac Leirner. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Ferreira Gullar. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Jesús Soto. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Carlos Cruz-Diez. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

[4] Obrist realiza entrevistas desde meados dos anos 1990, inspirado pelos diálogos de Duchamp com Pierre Cabanne e de Bacon com David Sylvester: OBRIST, Hans Ulrich. Arte agora!: em 5 entrevistas. São Paulo: Alameda, 2006, p. 111.
Em 2003, começaram a ser apresentadas em livros. No Brasil foram publicados seis volumes, com o título Entrevistas, pela Editora Cobogó. São conversas com artistas e também com importantes personagens de outras áreas do conhecimento. A mesma editora também publicou, em 2013, uma edição apenas com entrevistas que o curador realizou com o artista chinês Ai Weiwei. Ulrich também é autor do livro Uma breve história da curadoria, que, apesar do título, consiste em uma série de entrevistas que realizou com curadores. Publicado originalmente em 2008, ganhou uma edição brasileira em 2010, pela editora BEĨ.
[5] "(...) abordar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de forma que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central". Cézanne, em carta de 15 de abril de 1904 a Émile Bernard, citado em CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15-16.

[6] Isso tiro de uma entrevista concedida em 1963 pelo pintor norte-americano Jasper Johns a Billy Klüver:
“BK: Quando você terminou uma pintura, você não sabe nada sobre ela?
JJ: Sei mais do que qualquer um. Sei como eu a fiz.”
(In: JOHNS, Jasper. Writings, sketchbook notes, interviews. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996. p. 88, traduzido por mim do inglês).

[7] São eles: Artur Freitas, Marco Mello, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Rossana Guimarães, Carina Weidle, Fábio Noronha, Cleverson Oliveira e Tony Camargo.

[8] Os dois únicos entrevistados que não são artistas, Marco Mello e Artur Freitas, falam, sobretudo, de teoria, e quase nada sobre suas carreiras e suas motivações. Tony Camargo, entre os artistas, talvez seja o único que mantém a conversa sobre suas opiniões sobre arte, citando eventualmente algum trabalho seu apenas como exemplo; Cleverson Oliveira, embora fale de sua trajetória e de seu trabalho, discorre, sobretudo, sobre o meio e o mercado das artes.

Posted by Patricia Canetti at 10:09 PM