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junho 25, 2015
Carlos Vergara - Uma segunda pele por Luisa Duarte
Carlos Vergara - Uma segunda pele
LUISA DUARTE
A arte nos aproxima daquilo que, antes dela, somente pressentíamos. É preciso haver o artista e o seu poder transformador para que uma segunda pele seja dada a um mundo antes opaco. Para que essa alquimia aconteça, é necessária toda uma delicada relação entre visível e inteligível, espécie de base estrutural da obra de arte. Entra em cena um olhar atento capaz de enxergar todo um universo onde parece haver somente um grão de areia.
A mostra Carlos Vergara - Sudários reúne trabalhos cujo denominador comum é o gesto de doar uma segunda pele – não idêntica à primeira, mas, sim, uma versão dela – para situações que antes estariam condenadas ao esquecimento, ao olhar apressado. Seja nas telas de grande formato, seja na instalação composta por centenas de sudários ou, ainda, nas fotografias – membrana que revela um determinado instante –, em todas as séries hoje reunidas a origem encontra-se no ato de gravar uma certa forma, cor ou paisagem, em um pedaço de tecido ou papel e, nesse mesmo lance, que mescla planejamento e acaso, dar-nos a ver um acontecimento poético inaudito. Um outro elemento reincidente no conjunto exposto é o da viagem. Foi necessário ir a campo, sair do ateliê, para que o que hoje temos diante de nossos olhos viesse à luz.
Se tais procedimentos criam elos, a escolha por trabalhos que possuem uma paleta rebaixada coopera para dar contiguidade à mostra como um todo. Quem conhece a obra de Vergara sabe que existem inúmeros momentos nos quais as cores vivas se sobressaem – amarelos, vermelhos, azuis apontam num movimento para fora. Aqui, ao contrário, intencionalmente há uma constante de tons mais escuros. No lugar da festa, o recolhimento, em vez do grito, o murmúrio. Mas, note-se, nesse território no qual a sobriedade de fundo melancólico supera a euforia, há, sim, lugar para surpresas.
Comecemos pelas pinturas que introduzem a exposição. Em “Boca de forno” e “Calor II”, temos dois exemplares da série de monotipias sobre lona realizadas pelo artista a partir de viagens até a cidade de Rio Acima, em Minas Gerais, onde se localiza uma antiga indústria proprietária de uma mina de limonita na qual se processa óxido de ferro para fabricação de tintas. Se o pigmento está no DNA de toda pintura, aqui ele é início e fim, e o que surge como acontecimento acolhe o acaso. A cada vez que a lona ou o linho pousam sobre determinado lugar, não se sabe exatamente o que irá acontecer depois dali, o inaudito está automaticamente engendrado no processo, a matriz necessariamente será desviada. Cabe ao artista, no caso dessas telas específicas, somente decalcar um ambiente que era ele todo uma pintura em potência, pois o processo de moagem do pigmento fazia com que tudo e todos ficassem tomados pelo pó-cor. Assim, a pintura mesma estava ali, “in natura”, cabia realizar essa apreensão e o seu descolamento para o “mundo da arte”.
“Incêndio” é uma cartografia de um acidente. Se mapas servem à compreensão objetiva de um espaço, aqui temos as coordenadas de um caos. Mapear o imprevisto significa dizer que o acaso faz parte da obra e dele depende para existir. A lona que pousa sobre estilhaços cristaliza no espaço a irrupção do incontrolável. O processo é paradoxal, pois o que se vê é a conciliação entre um tempo que retém e outro que é puro devir. Em “Incêndio”, conseguimos avistar ambos simultaneamente. Saber estancar a hemorragia das horas sem por isso tornar distante a experiência do que se passou é operação rara; destilar, filtrar um acontecimento, sem com isso torná-lo anódino, é essa preciosa simultaneidade na divergência, resultado de uma alquimia fina, que se vê diante da tela. O que um dia foi puro caos ganha prumo, sem que nessa mudança se perca de vista a vitalidade do acontecimento de origem.
Completa o conjunto de pinturas a obra “Muro Mole”, na qual mais um paradoxo interno está posto – a firmeza própria de todo e qualquer muro se desfaz, o artista retira o chassi e deixa o tecido mostrar-se em sua maleabilidade. Se os pigmentos puros estão no DNA da pintura, mais ainda está no muro, suporte das primeiras manifestações humanas conhecidas, as pinturas rupestres. Em “Muro Mole”, Vergara mais uma vez realiza uma operação a um só tempo simples e potente, a pintura de alguma maneira já existia antes, o gesto do artista é o de ir ao mundo munido de lona e pigmento, exercitar a escolha do lugar, decalcá-lo e revelar, comportando o acaso, o que antes era paisagem opaca, sem segunda pele.
Será contra a aceleração e em favor de um olhar mais lento e cuidadoso que parece nos falar a instalação que completa a exposição, na qual veremos cerca de 250 monotipias realizadas em lenços de bolso. Escrevo sem ter visto a obra montada, mas podemos arriscar enunciar algumas ideias contidas nesses trabalhos nomeados de Sudários. Mesmo ganhando escala em conjunto, suspensos no ar ou presos à parede de maneira sutil, todos são primos da delicadeza e pedem uma aproximação paciente. Resultado de viagens do artista para regiões tão diversas quanto São Miguel das Missões, Capadócia, Pompeia e Cazaquistão, cada lenço traz consigo diferentes tempos e espaços, bem como ritualiza uma repetição. Os lenços enunciam presenças ausentes, recordam que a matriz se encontra distante, mas trazem consigo um vestígio do passado, conformando assim uma memória.1
Interessa-nos aqui, ainda não tendo visto a instalação pronta, pensar essa obra e o seu processo de feitura em relação a uma contemporaneidade saturada de imagens que nos parece mais cegar do que enxergar e na qual corremos desenfreadamente, sem saber ao certo para onde vamos. Entre posts no Facebook e fotos no Instagram, o presente torna-se contínuo, fazendo com que o passado desapareça rapidamente e o futuro nunca chegue. A ação de viajar, ir ao encontro do que não conheço ou ao que não me é familiar, torna-se cada vez menos experiência do presente e mais registro apressado em imagens do que se passa, com o intuito de serem postadas para uma multidão de outros, conhecidos ou não. Uma vida sem passado é uma vida sem espessura, monolítica, no pior sentido do termo.
Os sudários de Vergara, no que possuem de tranquilidade na solidão, no que incluem momentos de parada, de olhar paciente, caminham na contramão desse modus operandi atual – um estado dispersivo, que nos enfraquece em nossas potências mais verticais, no qual o tempo do capital nos engole e nos tornamos espécies de zumbis ventríloquos. Na mão inversa dessa onda que nos carcome de maneira insidiosa, cada lenço, mesmo que sutilmente, torna-se um gesto de resistência diante desse cenário de liquefação da experiência existencial em seus desafios maiores.
Das grandes monotipias sobre tela aos sudários, existe sempre uma pressuposição de que ali, no mundo sensível, concreto, habita uma segunda pele, uma dimensão inteligível e espiritual, que pede para ser acordada de seu sono profundo. É justamente essa alquimia de um despertar que mescla acaso e planejamento, surpresa e intenção que nos é endereçada em “Carlos Vergara - Sudários”, uma exposição que solicita a cada um de nós um tempo mais lento e uma abertura para as entrelinhas e os murmúrios. Somente assim estaremos despertos, e não anestesiados, para o encontro com a arte e, num sentido mais amplo, para a vida além da sua opacidade mortífera. Cheguemos mais perto dessas obras, reside aí a chance de um princípio diferente do mesmo.
NOTA
1 Completam a exposição dezenas de fotografias em pequeno formato com os registros das ações que originam os Sudários, sublinhando assim a importância do processo para a obra como um todo.