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junho 20, 2015
Sem querer abarcar toda a água que nos cerca por Marta Mestre
Sem querer abarcar toda a água que nos cerca *
MARTA MESTRE
Em sua última exposição (Galeria Pilar, São Paulo, 2014) Mauricio Adinolfi apresentou um conjunto de telas intitulado “Mangue” com uma representação vegetal colorida, mas que a dado momento o artista cobriu integralmente com um “brilho metálico da tinta prata”, tendo sido assim apresentadas na galeria.
Segundo o artista José Spaniol que assinou o respectivo texto, o gesto de Adinolfi “sufocava” a representação, e trazia para primeiro plano “as veladuras, as lacas, os vernizes, o pigmento prata sobre óleo”, isto é, um conjunto de propriedades materiais que opacificavam ou anulavam a primeira referencia à natureza.
Ainda que a superfície prateada com que Adinolfi cobriu as telas de “Mangue” não tenha anulado completamente a fatura da primeira pintura, e isso veio a constituir um elemento expressivo para o conjunto, havia naquela ação uma “recusa” da representação, ou certa recusa do gesto precedente. Este “impasse”, creio, apontou novas direções (não unívocas mas complementares) para Adinolfi continuar a fazer “pintura”, para além da pintura.
Estas novas direções não são de agora. Já nos anos 40 C. Greenberg referindo-se a Mondrian insistia na “presença física” da pintura, que contrapunha ao ilusionismo albertiano da janela na parede. A ênfase na “presença física” ajudava a pensar as relações, cada vez mais intercomunicáveis, entre pintura e escultura, em especial suas trocas de função, e simultaneamente consolidava a tese da “morte da pintura” (já anteriormente defendida por Malevich).
Posto isto, começaríamos por dizer que, tal como em “Mangue”, alguns gestos e opões de Maurício Adinolfi continuam a performatizar debates e impasses que a disciplina da pintura enfrentou e (ainda) continua a enfrentar, em especial, a questão do seu “fim”.
A série “Outburst” (2007), é disso exemplo. Nela o artista, auxiliado de ferramentas elétricas, diferentes brocas e instrumentos de corte, perfurava superfícies da madeira, criando diversas formas, como animais ou elementos lineares. Para além de um investimento físico do corpo, a ação aparentemente inócua de desenhar tinha um risco e um descontrole que punha em causa a idéia de figuração, levando Adinolfi, num salto interpretativo, a rapidamente “abandonar” o pensamento plástico para investir sobre a materialidade e espacialidade. Como Adinolfi referiu a propósito deste trabalho: “[era uma] combinação entre conhecimento, força bruta e elétrica, refletindo a ação como uma forma de pensar, onde o exercício intelectual e muscular se mostra em potência e instante na constituição do trabalho”.
Julgo que os dois momentos acima referidos – “Outburst” e “Mangue” –, em seu intervalo de sete anos, nos ajudam a entender a proposta que agora Adinolfi nos traz, e os impasses críticos que a sua pintura alimenta. Através de procedimentos “contra” a superfície e “contra” a representação Adinolfi atualiza a genealogia crítica da pintura (lembrando as ações de Fontana), mas abre espaço para entender a pintura operando por subtração (e não por adição) aproximando-se da escultura e da instalação, como aquela que agora nos traz.
“Calafate, um homem é um barco”, o seu mais recente projeto, guarda relação com as intervenções realizadas pelo artista em regiões litorâneas de rio e mar, em especial ações colaborativas e coletivas que envolveram as comunidades locais (“Cores no dique”, 2009-13; e “BarcoЯ”, 2013), mas ao contrário destas não se configura como uma “escultura social”. Aqui o artista não está preocupado em expandir a pintura ao quotidiano das populações ribeirinhas e “construir” uma troca de sentidos e experiências, mas interessa-lhe a experiência individual. E o mar é a superfície de contato, a “alteridade” entre o homem e o mundo, que vai querer explorar. Como refere Adinolfi “a idéia de se lançar ao mar sempre retorna à experiência individual da descoberta interior”.
Assim, “Calafate...” assume-se como um espaço de “embate” e “descoberta” através de elementos que já compõem a poética de Adinolfi, mas que aqui assumem um caráter metafísico ou, porque não, existencial.
Um barco de porte médio, visivelmente desgastado pelo uso e pelo abandono está encostado contra a porta de acesso da galeria, impedindo que vejamos, de uma só vez, toda a “narrativa” que o artista propõe. A existência de um elemento incomum – o barco - no centro da cidade causa um efeito de estranhamento, suspendendo a nossa credulidade, para além de contrariar a normal circulação pelo espaço da FUNARTE. Por este motivo, o acesso ao ponto “nevrálgico” da instalação faz-se por uma porta secundária que, uma vez transposta, nos desvenda não só a proeza técnica da colocação do barco quanto nos apresenta aquilo que chamaria de “recriação anti-naturalista do mundo”. Explico: diante dos nossos olhos conseguimos reconhecer todos os elementos que o artista nos apresenta, somos inclusive capazes de nomeá-los, mas escapam-nos os nexos lógicos entre eles. Objetos que sabemos pertencer ao real dissolvem as suas propriedades habituais e transmutam-se numa montagem onde os materiais recusam os seus sentidos culturais pré-estabelecidos e dialogam numa expressiva “desadequação”. Do interior do barco (mantemos a pergunta: “de onde veio e como foi ali parar?”) expande-se uma matéria irreconhecível (uma pintura) como num poema de Adinolfi: “O início casco, cinza, lodo; ressurgir/ da cor interna/ a jornada de cor”. A luz baixa faz-nos obliterar as características arquitetônicas da galeria, e focar a nossa atenção na “massa” que se espalha pelo chão: asfalto e entulho revestidos de fibra de vidro e tinta branca.
O mar, na poética de Adinolfi, não se apresenta como tema ou assunto da pintura, mas configura-se como um exercício de ir e voltar, de confronto incerto com questões específicas do artístico. Um “espaço intermediário” de elevado risco, assim como a baleia para Ismael ou o Adamastor para Vasco da Gama. Uma viagem interior (às “índias de dentro”, como escreveu o poeta português Camões) onde muitas vezes se navega com um mero bote salva-vidas.
É desta forma que, diferente de “Mangue” e de “Outburst”, a pintura que enxergamos em “Calafate...” guarda certa distância relativamente à sua genealogia crítica e parece muito mais atuar sobre o processo criativo, da mesma forma que uma idéia filosófica atua sobre o modo como pensamos. E por isso se torna necessário (pelo menos para mim isso chega de forma clara) que o artista esteja interessado em testar e abrir as potencialidades de um campo especulativo sem as contingências específicas da pintura. É isso que torna esta exposição um pretexto para continuar a explorar os impasses próprios da disciplina, podendo ainda se aventurar por outros mares.
Marta Mestre, Maio, 2015
* frase presente na dissertação de mestrado do artista. Madeira Sobre Mar - Unesp/Capes 2015