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maio 19, 2015
Das Amarras por Alexandre Costa
Das Amarras
ALEXANDRE COSTA
Em seu trabalho anterior, Tronco (2013), Afonso Tostes incluiu uma série de nove pinturas a óleo dedicadas às imagens do fogo e da fogueira, fazendo alusão ao seu uso ancestral como signo de comunicação entre os homens. A imagem seminal do fogo fora então colhida de sua cena mais remota, sua primeira pintura, delineada pelas palavras de Homero, de onde o artista viu irromper a imagem e a ideia da chama como sinal e anúncio da vitória dos gregos em Troia.
A visita a Homero desdobra-se agora nesta nova série, Das amarras, composta por obras que encontram na Odisséia sua motivação maior: as chamas e as tochas que encerram a Ilíada cedem agora à continuidade da narrativa homérica, cujas palavras desembarcam num novo cenário, talhado entre o céu e o mar, um cenário que (des)abriga Odisseu em suas venturas e desventuras na busca pelo caminho de regresso à casa.
É este cenário, tão cheio de céu e mar, que o artista acolhe na sua pintura, trazendo-o à tela na forma e na ordem de distintos azuis. É este o seu primeiro plano, em cores e formas que o artista limita à superfície. Mas sua arte reconhece que as estórias de Odisseu, amarradas ao fio das palavras de Homero, não se esgotam em mar e céu: elas exigem que se inclua nessa paisagem aquele que é capaz de narrá-la. Odisseu confunde-se a ela, contagiando-a de sua presença. Ele quer tornar à casa. Lá estão sua mulher, seu filho, sua terra. A falta deles nutre os seus movimentos e sua força, e bem mais que o leme, o remo e o barco, é o seu desejo que guia o retorno. Rodeado de mar e de céu, Odisseu também os têm contra si, e lança-se acima e abaixo deles, manejando toda a potência de seu engenho e de sua arte para superá-los. Se o desejo guia a sua viagem, seus truques e invenções – a sua poesia – são as ferramentas que lhe garantem sucesso.
Livre dessa poesia, a poesia do humano, o cenário não estaria completo. A busca de Odisseu é também a busca de Homero em revelar essa poesia e o quanto ela tem de sonho e invenção. Na tradução de Afonso Tostes para as palavras épicas de Homero, a realidade de Odisseu só se completa quando se completa o seu cenário, acrescentando à paisagem os traços de seu engenho e as marcas da sua arte. Essa completude é materialmente conquistada somando à superfície da tela e à técnica da pintura um segundo plano que se sobrepõe ao primeiro, impondo ao mar e ao céu os inevitáveis truques de Odisseu. Porque nem só de céu e mar vive o homem: ele lida com eles, interfere, reage, acrescenta-se a eles, deixando sobre a pele de tudo os indícios de sua arte, os variados inventos do “multiardiloso” Odisseu. Espelho do humano, ele inventa um caminho em meio à natureza, sobrepondo a ela suas amarras, aqui traduzidas em cordas, fios, carcaças, redes, laços, pedaços de madeira e vestígios de embarcações e barqueiros, materiais que o artista recolheu sob o céu e aos pés do mar, e que espelham a estória de Odisseu e a história dos homens, a astúcia de seus inventos e a perícia das suas mãos.