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abril 25, 2015
Conversa entre Lisette Lagnado e Bernardo Mosqueira sobre Encruzilhada
Conversa entre Lisette Lagnado, Diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e Bernardo Mosqueira, primeiro convidado do Programa “Curador visitante”.
Lisette Lagnado: A ambição do programa “Curador visitante” é projetar o estudante para além dos muros protegidos do Parque Lage, fazer dele um agente multiplicador. Em 1975, quando Rubens Gerchman fundou a escola, em pleno regime militar, o espaço de resistência ficava aqui dentro. Hoje, o desafio é outro. Como fazer a síntese entre a produção interna da escola, os temas públicos da agenda política – penso na agrobiodiversidade que a Profª Manuela Carneiro da Cunha trouxe na aula inaugural – e uma prática artística comprometida com o mundo contemporâneo? Conte como você se aproximou dos estudantes do Parque Lage para convidá-los a participar da exposição “Encruzilhada” que você está curando.
Bernardo Mosqueira: Em janeiro, durante o EAVerão, cheguei a acompanhar quase diariamente os cursos de imersão. Acabei entrevistando todos os participantes e orientando alguns projetos. Daí, convidei Ulisses Carrilho, que havia sido um dos alunos, a me dar assistência. Tornou-se um parceiro fundamental. Para o programa “Curador visitante”, ofereci um curso que, além das leituras, empregou uma estrutura terapêutica voltada para a investigação da encruzilhada que está em cada um.
Em uma das aulas, por exemplo, tiveram de elaborar respostas para duas perguntas: “o que há de singular em sua produção?” e “o que o mundo tem a ver com isso?”. Em outra aula, sobre carnaval e revolução, perguntei: “no centro de todas as possibilidades, o que você gostaria de ser?” e “o que falta, então, para isso?”. Assim, fomos, aos poucos, encontrando a configuração das encruzilhadas de cada um. Uma vez identificadas, adquiriram complexidade graças a novas questões e referências. Entendemos que todos nós fazemos o que precisamos da forma que podemos. Analisar nossas necessidades e nossas possibilidades (os meios para realizá-las) é conhecer nossas encruzilhadas.
LL: Como opera a “encruzilhada” nesta curadoria? É um tema, um dispositivo, ou uma projeção do momento político do país?
BM: Trabalhamos com três métodos simultâneos de pesquisa. O primeiro deles – o mais habitual no sistema das artes – foi articular um conhecimento acadêmico do mundo ocidental, particularmente na transa entre Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche, Herbert Marcuse, Mario Perniola, Toni Negri, Milton Santos e Muniz Sodré.
O segundo método surgiu da cosmologia de ancestralidade africana (ou de genealogia afrobrasileira) e comungou de uma série de consultas a Orunmilá, em especial de um jogo de búzios com a grande ialorixá Mãe Beata de Iemanjá e de alguns jogos com o amoroso Bruno Balthazar.
O terceiro caminho foi uma espécie de dispositivo analítico de linguagem pelo qual, após procurar sinônimos e traduções da palavra “encruzilhada”, buscamos a diferença entre os termos para, então, a partir desses coeficientes, listar suas qualidades e singularidades.
Pudemos entender que a encruzilhada é onde/quando os vetores espaciais cruzam os vetores temporais. Do ponto de vista da percepção, é quando nos surpreendemos com uma situação em que sentimos a necessidade de agir, mas não sabemos que escolha fazer. Ou seja, investimos no signo da transformação e da possibilidade e, portanto, nos encontros que sempre são propícios à comunicação e à circulação do desejo. Porém, mais do que expor um estudo sobre a encruzilhada, o objetivo desta curadoria é propor o exercício da encruzilhada, a encruzilhada enquanto ação.
Dessa forma, a exposição serve à análise do momento político do país, mas serve também para pensar a crise ecológica mundial e as negociações do real nas relações amorosas, por exemplo. De maneira mais ampla, ela se compromete com a pedagogia da análise crítica e serve diretamente a um projeto educativo de caráter transdisciplinar e experimental, como o da atual Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mais do que um tema, a encruzilhada é cultuada e construída para provocar reflexões. Ela é o objeto de nossa pesquisa, mas também o processo em si. Não nos interessa produzir uma metáfora da encruzilhada, e o resultado tomou a forma de uma exposição, com programação, conteúdo e reverberações.
LL: Por que mudar a montagem várias vezes ao longo da exposição? Qual o sentido disso? De repente, além de propor uma exposição maior do que o escopo previsto (vinte artistas, no máximo), você convidou mais de setenta artistas e ainda propõe aqui um formato instável e difícil, em transformação permanente...
BM: Notamos que pensar a encruzilhada é tratar da possibilidade de mudança do real. No candomblé, entendemos que é para Exu que dirigimos nosso pensamento. Esse orixá, que é o fluxo, o dinamismo, a transformação, a ação, a comunicação e a atividade sexual, se movimenta e modifica o tempo inteiro. Sua casa não tem paredes: tem caminhos abertos.
A partir daí, pudemos entender que a percepção da encruzilhada emerge apenas em alguns momentos, mas sua natureza é ontológica; é uma condição constante. Para fazer uma exposição que fosse encruzilhada (fosse Exu), e não metáfora-da-encruzilhada, não poderíamos congelar um instante da exposição, impedir que se movimentasse e se transformasse. Por isso, pelo menos um novo trabalho é inserido na mostra a cada sete dias. Há ainda uma programação semanal de performances, e, toda segunda-feira, uma parte da montagem da exposição é alterada.
Essas mudanças na organização espacial da mostra criam novos grupos de trabalho, novos discursos e novos sentidos que são anunciados nas frases plotadas no espaço expositivo: “Isto não é uma parede. Isto é um caminho aberto.” Espalhar trabalhos por todas as áreas do parque (Piscina, Terraço, Capela, Oca, Platô, Torre, Gruta, caminhos, encruzilhadas, jardins, trilhas e floresta) faz parte da concepção de uma mostra que conceitualmente não pode se conformar dentro de limites.
LL: Em que medida vocês identificam uma escola com uma encruzilhada? O que ambas têm em comum? Afinal, sua curadoria foi pensada para um lugar de ensino.
BM: Nosso processo se desenvolveu em um momento institucional de encruzilhada. Descobrir como transformar a estrutura da escola em um modelo mais dinâmico, mais livre, mais radical e mais atravessado por outras áreas do conhecimento é uma grande encruzilhada. Levar a EAV ao “grau zero”, como você dizia em janeiro, é trazer a escola para o ponto onde todo caminho é sentido e é possibilidade.
Da perspectiva do aluno-artista, o aprendizado é uma sequência de encruzilhadas. A cada nova informação recebida e a cada nova reflexão elaborada, ele se transforma, toma caminhos diferentes, tem novas responsabilidades, pode outras coisas. “Encruzilhada” só poderia acontecer no contexto de uma escola experimental de arte. Para construir a encruzilhada em si, como a desejamos, entendemos que precisávamos gerar com a exposição a experiência da surpresa, da abundância de caminhos possíveis e da necessidade de tomar uma decisão (que implica sempre em renúncia).
A grande quantidade e diversidade dos trabalhos e as múltiplas possibilidades de associação entre as obras são exigências conceituais próprias de um estado de encruzilhada e atendem um projeto pedagógico. Pensando a mostra principalmente para os estudantes da EAV, desejamos que levem da exposição a noção de “poder-mais”. Desejamos, junto com a escola, inspirar capacidade crítica, força, coragem e responsabilidade. Mas é importante que fique claro que não pensamos a exposição como um espaço para “aprender” somente: configuramos um conjunto de obras a partir do qual desejamos que o público crie conhecimento. Esse é um espaço de ação e transformação.
LL: Quais são os eixos que estruturam o percurso da exposição?
BM: Só posso falar da configuração inicial já que a ideia é que a montagem se modifique a partir dos acontecimentos públicos e das respostas que obtivermos dos visitantes (um pouco como se comungasse da atualidade jornalística dos folhetins).
Há um eixo dominante que atravessa temas como manifestações políticas, carnaval, pornografia e comunicação. Ele fica próximo à peça Território Liberdade: Faça Você Mesmo, de Antonio Dias (1968), para evidenciar que nosso interesse está mais nas ações sobre o real do que em sua representação. Um outro eixo parte de um conjunto de obras feitas aqui dentro do Parque Nacional da Tijuca e abrange trabalhos que investigam a crise ecológica e questões próprias à população negra e aos povos indígenas no Brasil. Assim, a floresta foi examinada como encruzilhada entre local e global, resistência e mundialização.
Temos ainda as relações amorosas como encruzilhadas e um estudo sobre o “possível”. Nesse grupo, há um conjunto de seis obras baseadas na imagem do dado. Seis como os lados do dado. Há um eixo que aborda Brasília, desde seu projeto e construção até um fantástico final, cruzando verdade e mentira. Por fim, há um grupo de performances e trabalhos na área externa que evocam a força que nos leva a dar o próximo passo.
LL: Você saberia dizer em que momento de sua vida tomou a decisão de ser curador de exposições?
BM: Eu estudava Engenharia Mecânica na UFRJ havia quase três anos quando resolvi fazer o curso “Arte e Filosofia”, com Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, no Parque Lage. Depois de alguns meses, eles propuseram o exercício de produzir um texto crítico sobre uma exposição que estivesse aberta na cidade. Na noite em que apresentei esse texto, Fernando me disse “Bicho, você já é crítico de arte.” E Anna Bella: “Larga essa engenharia. Você tem de ser um de nós.”. Mesmo que estivessem clara e carinhosamente exagerando, e que ela tenha completado com sua clássica máxima “eu estou brincando, mas não estou”, decidi confiar neles.
Desliguei-me da Engenharia, ingressei no curso de Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ e, pouco tempo depois, comecei a estagiar no setor de Comunicação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde fiquei por aproximadamente um ano e meio. O cotidiano na EAV e no MAM me apresentou aos artistas que tinham na época de 20 a 30 e poucos anos. Acompanhei com muita intensidade essa produção – e posso dizer que a parte mais importante de minha formação se deu (e se dá) dentro dos ateliês dos artistas e em grupos de estudo com eles. Logo que me desliguei do MAM RJ, fiz minha primeira curadoria, “Liberdade é Pouco. O que desejo ainda não tem nome”. Foram 47 artistas, na minha casa, discutindo liberdade. Havia também uma sensação de que os curadores naquela época não eram muito generosos nem muito criativos. Isso, depois, se mostrou em parte uma arrogância de quem era muito novo, mas foi fundamental para que eu me empenhasse em desenvolver um tipo de curadoria baseado na relação atenta e íntima com os artistas e seus trabalhos.
LL: Poderia citar uma curadoria importante na sua formação?
BM: Citaria duas: a dOCUMENTA 13 (em Kassel, na Alemanha, em 2012, com direção artística da curadora Carolyn Christov-Bakargiev) e “Contrapensamento Selvagem” (dentro da mostra “Caos e Efeito”, no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2011, com curadoria de Paulo Herkenhoff). Mesmo que eu tenha ressalvas, ambas foram transformadoras na minha forma de ver e fazer exposição.
LL: Me interessa o que exatamente mudou na sua cosmovisão da arte, se é que podemos falar da arte como aparelho de percepção para agir no mundo. Ou seja: você já vinha atuando como curador, mas, de alguma maneira, essas exposições colocaram sua prática em questão, em xeque (numa encruzilhada).
BM: Para mim, realizar uma exposição é o ato político de organizar muitos discursos a partir de um conjunto de compromissos éticos. Localizo a medida do sucesso de uma mostra no coeficiente de transformação que ela gera no público (individualmente, nos grupos e nas comunidades), no artista participante, na instituição, na estrutura das relações e símbolos do sistema das artes e na cultura. Quanto maior e mais positiva for a transformação, mais forte é a exposição. Uma exposição, portanto, deve fornecer, semear e tornar mais possível a elaboração de processos de reflexão.