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abril 23, 2015
Não temo quebrantos por Raphael Fonseca
Não temo quebrantos
RAPHAEL FONSECA
Felipe Caldas - Corpo Santo, Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 18/03/2015 a 26/04/2015
O projeto RS Contemporâneo possui um pressuposto claro: dois profissionais de Porto Alegre selecionam quatro artistas atuantes na cidade para serem acompanhados por e dialogarem com quatro curadores de outros estados do Brasil. Tratando-se de nossa escala continental, não se faz óbvio que as duplas de comparsas formadas desse modo já se conheçam previamente – ao menos este não foi o caso desse “encontro às escuras” com Felipe Caldas.
Sermos da mesma geração e cursarmos ao mesmo tempo nossos doutorados em história da arte era apenas o começo da série de coincidências que perpassa o meu percurso e o de Felipe. Se ele foi criado na pacata cidade de Alvorada, ao lado de Porto Alegre e com menos de 200 mil habitantes, também fui acostumado a uma relação de centro e periferia com o Rio de Janeiro. Ser criado na zona oeste da cidade, no enorme bairro de Jacarepaguá, também me ensinou, assim como percebi nos relatos de Felipe, a sempre ter de sair duas horas antes de casa para qualquer compromisso e levar, para o bem e para o mal, a vida muito a sério.
Conhecer o seu ateliê foi como visitar a casa em que fui criado e onde minha mãe ainda reside; a amálgama entre vida profissional e vida familiar, entre vida ativa e contemplativa, tornou-se nostálgica e cheia de detalhes. Sentamos todos na mesma mesa para almoçar sem distinção entre mãe, filhos e visita, com cachorros que dormiam aos nossos pés, e com um fluxo de assuntos que se movimentava das questões específicas daqueles que estudam as artes visuais para observações sobre a vida que apenas as matriarcas sábias são capazes de construir.
Ao lado desse espaço de encontro, havia um pequeno altar em que duas esculturas religiosas afro-brasileiras estavam concentradas; a mãe de Felipe é filha de Oxum e frequenta as chamadas casas de batuque desde a juventude. Mais do que isso, trabalha como costureira de roupas de santo para outros praticantes. Enquanto isso, minha mãe trabalha como costureira modista e é filha de Iansã. Pratica esporadicamente a umbanda e, quando reza, pede para os bons guias de luz, Nossa Senhora da Medalha Milagrosa e os pretos velhos que admira.
Artista e curador desta exposição coincidem quanto ao fato de não serem frequentadores de nenhum espaço religioso, mas contrastam quanto às suas ascendências afro-brasileiras: o primeiro é filho de Ogum e este que escreve é de Xangô. Não podemos negar a presença constante de cantos, imagens e objetos afro-brasileiros dentro dos nossos espaços domésticos desde nossas infâncias; estes formaram a nossa cultura visual e a ideia do que seria uma religião de nossas famílias.
Imagino que seja a partir desse contato diário e reflexivo sobre a relação entre imagem e religião que advenha o interesse de Felipe Caldas na construção da série nova de trabalhos apresentados no Santander Cultural. Corpo santo nasce da rotina, dos laços familiares e dos afetos que transbordam nossas relações.
Formalmente, ao se observar a produção do artista, é possível aproximá-lo de outros autores cujas imagens denotam um embate entre corpo e tela ou papel em branco. Em obras expostas recentemente, como em uma série de desenhos de 2011-12, é perceptível a sobreposição de informações visuais espalhadas por toda a superfície. Faz-se difícil contornar a ação do artista, o que torna estas obras um registro da gestualidade e dos materiais utilizados (como grafite, carvão, tinta e betume) sobre o branco – é essencial a experimentação da forma e o enfrentamento do desenho como processo em que o tempo age.
Já numa série de pinturas expostas em 2012 e retomadas em 2014, o artista explorou um caráter mais narrativo de sua produção: os sonhos. Quando observamos algumas destas telas, como Eu sonho com Beuys e Antônio Dias (2012), em que Felipe inicia uma pesquisa em que dialoga com alguns dos artistas que admira e que se configuram como suas referências, sua pintura se torna menos violenta e dispersa, construindo uma imagem mais narrativa. Na obra citada e relativa a Beuys e Dias, é na anatomia do animal ao centro da composição que se concentram as manchas assimétricas e de cor barrosa que vinham a ser exploradas pelo artista. O mesmo pode ser dito de outras imagens dessa mesma série em que áreas de pinceladas rápidas contrastam com figuras que aparecem de modo difuso do que poderia ser o fundo da imagem.
As pinturas que compõem a série Welcome to macumba, também do ano passado, parecem ser mais familiares ao conjunto de obras de Corpo santo. Além da proximidade no que diz respeito às narrativas aqui propostas, há um maior detalhamento da materialidade dessas cabeças de animais – o caráter expressivo comentado no começo não abandona as suas preocupações, mas me parecem ser as primeiras imagens em que claramente são perceptíveis contornos anatômicos e uma relação mais clara entre primeiro plano e segundo plano.
No que diz respeito às novas pinturas e desenhos apresentados no Santander Cultural, o primeiro dado que me chama a atenção diz respeito à monumentalidade da forma que não está contida exclusivamente na escala das telas, mas no modo como os corpos as preenchem. Felipe dá destaque às figuras centrais a essas composições e, mais que isso, proporciona um entorno para suas carnes que faz com as que as imagens respirem e as vejamos com clareza. Ainda há espaço para experimentação dos materiais e das pinceladas rápidas, mas esses elementos não se sobrepõem aos corpos, e sim contribuem com seu destaque.
Temos uma resolução formal da sacralidade que bebe claramente de tradições pictóricas ocidentais e muitas vezes cristãs – não à toa aí estão citações a Andrea Mantegna e à Capela Sistina de Michelangelo. Porém, o que me parece interessante é que temos perante os nossos olhos um corpus de distintas configurações físicas da santidade tanto numa perspectiva cristã, quanto com elementos iconográficos afro-brasileiros e de outras distintas culturas como a budista (e suas tartarugas) e a egípcia (o ouroboros). Mais do que isso, fica o convite para que o espectador acesse tal conjunto de signos e estabeleça cruzamentos a partir de seus vocabulários imagéticos – um homem sentado num trono vermelho não necessariamente é São Jerônimo, do mesmo modo que uma mulher que traja azul não deve ser rapidamente associada a Iemanjá. O artista cria, portanto, um panteão de colagens de elementos que são, antes de tudo, apenas imagens.
Creio ser interessante pensar junto a Hans Belting e seu livro A verdadeira imagem, publicado em 2006. Logo na primeira frase, o historiador se pergunta: “Que é uma imagem verdadeira?” – imagino que esta pergunta seja aplicável também ao conjunto aqui proporcionado por Felipe Caldas e, abrindo um pouco a questão, à relação entre imagem, religião e Brasil. Em outras palavras, essa série de desenhos e pinturas me leva a perguntar se existiria uma “imagem verdadeira” no território das religiões brasileiras; como responder essa questão se, do mesmo modo que distintas foram as correntes do budismo pelo mundo asiático, multifacetadas foram também as organizações religiosas no Brasil?
“A fé na verdadeira imagem trai-se também a si mesma, já que facilmente pode ser abalada”, segue a argumentar Hans Belting.[1] Nas duas instalações presentes na exposição, essa traição inerente a qualquer imagem vem à tona e denota a potência da pesquisa de Felipe Caldas. Um barco de papel, objeto ritualístico de alguns grupos budistas, é pintado de dourado, içado ao ar e tem sua fragilidade escancarada. Já no chão, vemos um ponto riscado (assinatura gráfica da umbanda) criado pelo artista e feito com sal grosso. O vento que pode derrubar o barquinho é o mesmo capaz de dissolver o grafismo do chão e verter ambas as instalações naquilo que sempre foram: imagens.
Experiências visuais como essas permitem cruzamentos entre espaços, tempos e crenças que convidam o público a fruir e aprender sobre as imagens na mesma medida que me fizeram conhecer as até então por mim ignoradas casas de batuque no Rio Grande do Sul. A partir de meu desconhecimento, pude perceber os tantos pontos em comum não apenas entre o batuque daqui e a umbanda do Rio de Janeiro, mas entre a persistência de Felipe Caldas na criação de imagens e a minha própria na tentativa de escrever.
Seguimos em busca de imagens e palavras verdadeiras que têm prazo de validade; criamos e analisamos esses corpos santos que, quando jogados para o mundo, rapidamente se tornam profanos. Conscientes dos nossos limites, não tememos, porém, os quebrantos; parafraseando e adaptando um canto de Clara Nunes: “Dentro do samba nós nascemos, / nos criamos, nos convertemos / e ninguém vai tombar a nossa bandeira.”[2]
Notas
[1] BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne Editora, 2011. p. 10.
[2] “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, e cantada por Clara Nunes no disco homônimo lançado em 1978.