|
março 20, 2015
Todos os mares por Katia Maciel
Todos os mares
Para Daniela Bousso, Alberto Saraiva e Paula Alzugaray
Eu morava do outro lado da montanha. Nos fins de semana, ia à praia de carro com meu pai, minha mãe e meu irmão. Lembro que nunca sabia se estava indo para a praia ou para a serra, onde vivia minha bisavó. Sentia como se fosse uma viagem e enjoava nas curvas. Da praia lembro do estalo quando pisava na areia, que acabara de dormir, e de ficar olhando, por muito tempo, o horizonte com os braços estendidos, como se as ondas fossem subir até minhas mãos e não desmancharem a meus pés. Esperava que o mar enchesse como um copo de água e alcançasse minhas mãos.
Pensando nessa imagem, realizei a instalação Ondas: Um dia de nuvens listradas vindas do mar (2006) em que mar reage à presença do visitante empilhando progressivamente suas ondas. Vi o mar em listras como esperava vê-lo na praia da minha infância.
Ao olhar, hoje, este mar listrado, penso na geometria informe de um mar impossível. O mar como superfície de azuis com linhas brancas que se quebram umas sobre as outras. O branco se desmancha sobre nossos pés e chega rápido ou de mansinho, mais uma vez, lá de longe, ao infinito. O som fervilhante afunda o sabor efervescente.
Com uma câmera caseira, filmei, na praia do Forte São João, bem perto dos meus pés, as ondas que pareciam chuva de luz, pura energia a cintilar na imagem como fogos de artifício.
Na instalação reuni estes dois sentidos das ondas, onda mar e onda energia. Ondas empilhadas diante de você e ondas de energia branca sob os pés. Vemos, ao final, a imagem da frase escrita por James Joyce em O retrato de um artista quando jovem, quando ele se reconhece como escritor: “um dia de nuvens listradas vindas do mar”. Joyce se pergunta – De onde veio esta frase? As ondas suspensas e repetidas nos encaminham para as nuvens moventes no céu.
No mesmo dia que filmava Ondas: um dia de nuvens listradas vindas do mar, filmamos o vídeo Mareando no qual, sentada de costas, miro o mar que, em movimentos acelerados, curtos, longos e insensatos, parece estar em um mundo diferente do meu. Buscava uma imagem que indiferenciasse objeto e referente, como o faz progressivamente a narrativa do romance A invenção de Morel, de Bioy Casares: um refugiado em uma ilha assiste a um mundo onde o real é pura imagem. Em Mareando, sou figura fixa diante de um mundo que é movimento. Aproximo, talvez, o mar do cinema do ponto de vista de uma espectadora que se move pouco diante das marés e maresias.
Vertigo é o nome da instalação em que ondas verticais e invertidas, em fluxo contínuo, nos abrigam no ponto de fuga: quanto mais nos aproximamos do encontro que ocorre no canto entre as duas paredes projetadas, maior a sensação de vertigem. A geometria surge na forma de uma mesma onda que encontra a si própria em um ângulo de 90 graus. O espelhamento de ondas reforça a ideia de uma repetição que, no entanto, parece se diferenciar de si mesma, dado o movimento do fluxo e refluxo que nos abriga.
Vertigem é o princípio de Vertigo, de Alfred Hitchcock, e também da Invenção de Morel: a vertigem é o amor. Nas duas narrativas, o homem afunda em imagens em busca da mulher. Mulher que é imagem de outra (Vertigo), mulher que é imagem de si mesma (A invenção de Morel). Vertigem é cinema, movimento circular a nos tragar para o fundo feito de nossas próprias imagens, posto que, como nos diz Henri Bergson, somos imagens entre outras imagens.
Mar adentro é o avanço do mar dentro das arquiteturas dos museus e galerias. O mar surge em ondas aos nossos pés, que se movimentam pelo piso coberto de areia. As ondas disparadas por sensores acompanham os visitantes e seguem muitas direções, em geometrias inusitadas. O som parece o sussurro de mares conhecidos. Mar adentro também é título do filme espanhol de Alejandro Amenábar: um homem mergulha em um mar de azul em esplendor e sofre um acidente que o deixa sem movimentos. Toda a vida parece concentrada nos tons de um mar que deixa de existir.
Uma vez sonhei com uma casa de vidro perto do mar em que o piso era feito de ondas azuis, tudo era azul. Mar adentro é o piso de ondas, é o mar produzido pelo encontro de ondas que cada visitante acrescenta à instalação. A presença e mais uma presença e outra presença geram o mar e outro mar e outro mar.
Tanto mar. Tanto mar.
As praias dos piratas na Bretagne e no Caribe, o mar da China, as praias de Arraial, as praias do sul de Torres a Mole, as praias azuis mediterrâneas, as dos penhascos portugueses, as pacíficas e mornas do Nordeste, com a força do Paracuru e a gentileza de Patacho. Muitas praias. Escrevo este texto na praia de Santo Antonio, perto do Cabo Polônio, uma praia selvagem como a do início do mundo: estou no Uruguai, mas estou na Barra da Tijuca da minha infância quando atravessava o verde e chegava, pisando de mansinho, na areia que estalava.