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novembro 29, 2014
Falso movimento por Jacopo Crivelli Visconti
Falso movimento
JACOPO CRIVELLI VISCONTI
Falso movimento, Luciana Caravello Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ - 12/12/2014 a 17/01/2015
Em meados dos anos 1970, Wim Wenders dirigiu três longas-metragens hoje quase míticos, Alice nas cidades (1974), Movimento em falso (1975) e No decurso do tempo (1976), caracterizados pelo vagar constante e aparentemente sem rumo de seus personagens. Livremente inspirado no romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795), o segundo episódio da chamada “trilogia Road Movie”, Falsche Bewegung, em seu título original, é o mais enigmático dos três: os diálogos são truncados, os personagens propositalmente indecifráveis. O trem que atravessa a Alemanha parece quase não sair do lugar, como se o que vemos passar do lado de fora das janelas não fosse uma paisagem real, mas, por sua vez, apenas um filme. É a partir dessa ideia de um movimento incessante e que, contudo, não leva a lugar algum, que foi sendo construída a exposição. Ao tornar-se inconclusivo e falso, o movimento adquire um significado novo, e de físico torna-se metafórico, poético e, em última instância, inevitavelmente político, evidenciando assim o valor altamente simbólico do cruzamento das varias acepções do termo.
Para alguns dos artistas reunidos na exposição, o movimento, entendido aqui no seu sentido mais convencional, representa um elemento central e recorrente, uma estratégia privilegiada para a produção dos trabalhos e, antes disso, para a construção de uma poética pessoal. Praticamente todas as obras de Helen Mirra, por exemplo, envolvem em algum momento o ato de andar, e pressupõem o movimento do corpo (seja da artista e/ou do público). Na série de fotografias incluídas na exposição, o registro da mão que segura uma pedra em correspondência do borde do caminho, como uma vírgula que separa duas palavras (de onde deriva o título Comma, “vírgula” em inglês), é justaposto a uma descrição da paisagem, quase a sugerir a possibilidade de ler e entender o mesmo lugar de maneiras distintas e complementares. Pablo Pijnappel também mistura frequentemente em seus trabalhos viagens e literatura, autobiografia e ficção. Na projeção de slides Fontenay-aux-Roses, as imagens e o relato da história se entrelaçam, se complementam e se contradizem, sem que seja possível chegar a uma interpretação única e conclusiva dos acontecimentos. Também Daniel de Paula recorre frequentemente à combinação de um texto escrito e uma imagem, como na série das Leituras, registros de livros lidos “em movimento” (seja caminhando, remando ou movendo-se de outra forma), e principalmente em Tentativa de exaustão da cidade de Paris, que alude tanto ao universo literário do ensaio de Georges Perec Tentativa de exaustão de um lugar de Paris (1975), quanto às celebres ações solitárias de Bruce Nauman em seu ateliê (1967-68).
Não movida pela pretensão de “exaurir” um lugar ou um assunto, a série Os carros, em que Felipe Bertarelli retrata inúmeras carcaças de carros abandonados, aponta silenciosamente para um falimento econômico endêmico, ao passo que se situa também no lugar indefinido onde o movimento (do artista) encontra e retrata uma imobilidade (da paisagem, da cidade ou dos carros). Adrián Balseca também escolheu um carro, neste caso o Andino – até hoje o único modelo produzido na história do Equador – para refletir sobre a recorrente falência das políticas governamentais na América Latina. O artista retirou o tanque do carro, privando-o assim do combustível da mesma forma como o petróleo vem sendo subtraído metodicamente ao povo que seria seu legítimo proprietário, e o levou da capital Quito até Cuenca, no sul do país, contando apenas com a ajuda espontânea de quem encontrava no caminho. Novamente, somos confrontados com um movimento ao mesmo tempo real e fictício, e que alude, de maneira metafórica mas extremamente direta, ao impasse e à imobilidade das políticas sociais. Algo análogo acontece na obra de Ivan Grilo, Voyage au Brésil, parte de uma extensa pesquisa sobre a herança cultural africana no nordeste do país: a viagem, neste caso ironicamente equiparada, no título, a uma exótica excursão turística, é prelúdio a (ou talvez ferramenta para) uma reflexão sobre a persistente segregação racial no país.
Em Jardim fantástico, Letícia Ramos constrói a impressão de um filme a partir de imagens fotográficas. Evidentemente, qualquer filme funciona assim, com o movimento que surge da justaposição de fotogramas. Mas, neste caso, poder-se-ia dizer que a ilusão é ainda maior, porque a sensação do movimento não é gerada pela rápida sucessão de imagens coletadas no mesmo ponto durante um certo tempo, mas por fotografias tiradas ao mesmo tempo de pontos distintos, através de uma câmara com múltiplas lentes desenvolvida pela própria artista. O movimento se fragmenta e se torna quase paradoxal, embaralhando a maneira como nos relacionamos com o tempo e o espaço, como nos gestos mecânicos e absurdos de Pia Camil, que em No A Trio A tenta “negar” a célebre performance Trio A (1966), de Yvonne Rainer, ao executar a coreografia com uma máscara que dificulta a visão e sapatos altos que quase impossibilitam seus movimentos. Lentamente, o que deveria ser, na concepção de Yvonne Rainer, uma coreografia acessível a qualquer um, torna-se um exercício extremamente difícil, evidentemente absurdo. Ou, para citar o trabalho de Ricardo Villa que, nesse sentido, sintetiza a exposição, o que deveria ser uma utopia transforma-se no seu oposto, uma Distopia, confirmando que o movimento, ou sua falta, nunca poderão deixar de ser intrinsecamente políticos.