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novembro 12, 2014
Eu pintei a morte por Iberê Camargo
Eu pintei a morte
IBERÊ CAMARGO
Iberê Camargo: Século XXI, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 19/11/2014 a 29/03/2015
Os motivos de meus quadros são visões do cotidiano, que transporto para o mundo das lembranças sob a inspiração da fantasia.
Certa vez, decidi pintar uma cena que via diariamente a caminho do ateliê: um cego, tocador de sanfona, sentado em um tamborete, com a bengala encostada ao muro, um pires sobre a calçada para recolher as esmolas e um velho cão deitado a seus pés. Nada mais prosaico do que essa cena que mais move à caridade do que provoca emoção estética. Mas por que não fazer com ela uma obra de arte? Foi a pergunta que me fiz e o desafio que me coloquei.
Numa das minhas passagens pelo local, fiz um rápido croqui do modelo e me pus a executar o quadro. Partindo dessa realidade de escasso valor plástico – considerava o modelo inexpressivo – e sem recorrer a fontes ancestrais, a arquétipos, como faz Picasso, porfiei, em vão, interpretá-lo com vigor e verdade. Sempre, ao colocar a última pedra, a construção desmoronava. Com a teimosia que alimenta o criador, varei a noite fazendo e refazendo a obra, até a exaustão.
O primeiro clarão da manhã veio iluminar uma tela – O sanfoneiro – lívida de cor: cinza sobre cinza, branco sobre branco. A figura de mulher que nascera, que ali estava sentada, era esquálida, de aspecto soturno e inquietante. A sanfona, que de início repousava sobre o regaço, deixara apenas vestígio. Longos dedos descarnados tamborilavam sobre as costelas à mostra. Era a morte que tocava na sua própria caixa torácica, emitindo um som cavernoso, abafado. Reconheci de imediato o cão que a acompanha, esse que, por certo, devora os cadáveres.
O quadro foi exposto sem nenhuma probabilidade de venda, tal sua mórbida expressão. Porém, inesperadamente, à véspera do encerramento da mostra, um jovem o adquiriu e prometeu retornar no dia seguinte para apanhá-lo. Nesse dia, o comprador foi encontrado morto sobre o piso ensanguentado de seu apartamento.
A morte se antecipara.
Iberê Camargo
Porto Alegre, 7 de agosto de 1993