|
novembro 3, 2014
EAV 75.79 – um horizonte de eventos por Marcelo Campos
EAV 75.79 – um horizonte de eventos
MARCELO CAMPOS
Evento e horizonte são palavras que lidas separadamente nos colocam diante de variadas analogias. Como evento, podemos pensar em algo que será momentâneo, ocasional, mas, ao mesmo tempo, nos direcionamos para a possibilidade de quebra dos encadeamentos repetitivos, a cada experiência, uma surpresa, uma excentricidade. Já a palavra horizonte identifica-se com possibilidades vindouras, o vir-a-ser, o porvir. Em outra medida, a condição norteadora, a perspectiva, o lugar para onde as linhas da observação convergem. Tudo isto são predicados cabíveis à Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Lugar de eventos e horizontes, estímulos, ampliações, convergências, acontecimentos instantâneos, mas modificantes, edificantes, melhor seria dizer.
“Horizonte de eventos” é um termo científico que limita as condições de observação cosmológicas. Tudo que está contido no horizonte de eventos, ainda pode ser nomeado, visto, aproximado. E no restante, no que sobra para além desta potência, temos o buraco negro, a incerteza, o ponto do não-retorno, o que não se deixará conhecer. Esta é a atmosfera escolhida para tratar da exposição, reunindo cosmologicamente, uma galáxia composta de fatos e vestígios incertos.
A exposição "EAV 75.79 – um horizonte de eventos" trata do período da primeira gestão da Escola de Artes Visuais, então sob responsabilidade do artista Rubens Gerchman. Para a exposição, selecionamos (Helio Eichbauer e Marcelo Campos), materiais que compreendem eventos seminais, ocorridos no âmbito da EAV. Ao mesmo tempo, percebemos fatos políticos e socioculturais que ampliam as noções de ensino da arte no Brasil, da liberdade de criação - numa época marcada pela ditadura militar - da iniciativa inovadora de Gerchman em gerir uma escola livre, com aulas abertas à comunidade, com o empenho em incluir eventos relativos à cultura negra e à cultura popular. Ao mesmo tempo, passaram pelas dependências da EAV artistas, críticos de arte, antropólogos, diretores de teatro, cenógrafos, poetas, músicos, tais como: Rubens Gerchman, Frederico Morais, Helio Eichbauer, Lygia Pape, Celeida Tostes, Gastão Manoel Henrique, Roberto Da Matta, Rosa Magalhães. As aulas ministradas na EAV configuravam uma pletora de pluralidade, desde oficinas de cinema, gravura, desenho a inovadoras experiências em videoarte, por exemplo.
O cinema foi ponto de destaque e inflexão na produção do chamado CINEAVE, a saber, mostras e exibições de filmes – coordenadas pelo professor Sérgio Santeiro – realizados por grandes diretores do cinema nacional, entre outros: Cacá Diegues, Rogério Sganzerla, Domingos de Oliveira, Ivan Cardoso, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos.
A música e a poesia tinham ampla difusão nos eventos do Verão a 1000, coordenados por Xico Chaves. Pelo pátio da piscina da EAV circulavam músicos e poetas de grande relevância nacional. Assim, foram realizados shows e lançamentos de livros de poema-processo em noites festivas. Pela EAV, passaram, Neide Sá, Falves Alves (RN), Almandrade (BA), Paulo Brusky (PE), Luiz Melodia, Caetano Veloso, Jards Macalé, entre outros. Confirmamos, no acervo da EAV, a importância da poesia (poema-objeto, poema-processo, poesia marginal) que junto a outras ideias de vanguarda funcionam, sem dúvida, como um das primeiras dedicações dos artistas ao teor experimental que tão fortemente caracteriza a arte contemporânea brasileira.
As experiências de Helio Eichbauer são fundamentais para a implantação do ensino e da atmosfera da EAV. Eichbauer elaborava os cursos de Oficina do Corpo e Oficina Pluridimensional, hibridizando filosofia, etnicidade, cultura popular, teatro, cinema, música com aulas que aconteciam em várias partes do Parque, dentro e fora das salas de aula, (nos jardins, no terraço) e que geravam participações as mais diversas, como confecção de maquetes, exercícios de maquiagem, leituras dramatizadas.
O material a ser apresentado na exposição está completamente vinculado ao acervo da Escola, organizado, recentemente, em um projeto denominado Memória Lage, coordenado por Marcelo Campos e Sandra Caleffi e patrocinado pela Petrobras. Como dado de grande surpresa, vemos, nos arquivos, cartazes, colagens feitos por artistas que, no ímpeto de divulgação dos eventos internos, criaram peças gráficas de absoluta originalidade.
Sabemos que os anos 1975 a 1979 foram um momento de exceção da cultura brasileira, com tímida abertura política em meio a um governo totalitário. A Escola de Artes Visuais do Parque Lage se configurara, então, como um topos, uma clareira na mata, um lugar que iluminava o entorno das artes e da cultura, quando todo resto era obscuro, incerto, reprimido. Assim, Eichbauer nos propõe o conceito norteador da exposição, "horizonte de eventos". Aqui, tal termo científico, fronteira teórica ao redor de um buraco negro, ganha amplas conotações. Apresentamos, na exposição, uma possível iluminação sobre o sentido de arquivo, de memória. Ao mesmo tempo, todo o restante, o que compõe a escuridão, continua a existir como potência, mas não se deixa ver, por razões que a história brasileira ainda está a revelar.