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outubro 29, 2014
Vigor gestual, precisão matemática por Eduardo Veras
Vigor gestual, precisão matemática
EDUARDO VERAS
Teresa Poester - Anagramas, Bolsa de Arte, Porto Alegre, RS - 02/10/2014 a 05/11/2014
A ponta-seca nunca é verdadeiramente mansa, nunca é muito doce ou delicada. A ponta-seca sulca a superfície do metal, abre caminho à força, levanta rebarbas, deixa marcas estropiadas do seu trajeto. As rebarbas, inclusive, se fazem desejáveis quando se prepara a chapa para a impressão; é nelas que se fixa a tinta antes de encontrar o papel. Na gravura já impressa, a linha que vem da ponta-seca não chega a alcançar a precisão – a destreza, a perícia – da água-forte. A linha da ponta-seca parece antes, e sempre, errática e malconformada. Conserva, porém, uma energia que se associa à sua própria origem, memória do ataque do buril contra o espelho do cobre: há vigor na ponta-seca, talvez mais do que em qualquer outra possibilidade da chamada gravura em metal.
Imagine agora que essa imagem impressa, resultante da ponta-seca, seja fotografada, copiada digitalmente e superampliada. A linha, tida como incerta mas vigorosa, vai ganhar em intensidade; com sorte, se mostrará tanto mais incerta quanto vigorosa. Suponha agora que, sobre essa gravura superampliada, entrem novas linhas, desenhadas diretamente sobre o papel. Tenha em mente que essas novas linhas, se não guardam a rebarbativa errância do buril, seu soluçante desenrolar, oferecem o mesmo ímpeto das linhas originais: elas não vêm doces nem acanhadas. Elas se riscam com vontade, com destemor, sem piedade.
Ainda em um exercício imaginativo, considere as chances de se repetir esse mesmo percurso criativo: reimprime-se a gravura, desenha-se sobre ela, linhas azuis sobre o preto, lilases, verdes. Tudo se arranja e se rearranja com grande liberdade. É um procedimento livre e aberto. Aparentemente sem ciência, sem exatidão e sem matemática. E, no entanto, a matemática está lá.
O que se procurou esboçar nos parágrafos precedentes é parte do método adotado pela artista visual Teresa Poester (Bagé, 1954) na criação de sua mais recente série de trabalhos.
Teresa vem de uma trajetória de mais de 35 anos de atividade no campo da arte, na qual se sobressai tanto seu interesse pela paisagem, e suas possibilidades de construção e desconstrução, quanto seu gosto pelo desenho. Em outra ocasião, ponderei que talvez não fosse a artista que perseguisse o tema da paisagem, mas o inverso disso. Quem sabe seja a evocação paisagística que não abandone Teresa, supondo-se, talvez, que nem sempre são conscientes ou programadas todas as escolhas de quem cria. Haveria questões que retornam, ou que teimam em permanecer, quase à revelia de seus autores. Elas não são convocadas, mas, quando menos se espera, estão lá mais uma vez. Mesmo quando tudo parece se encaminhar para a total abstração, persiste uma sugestão de paisagem.
Da mesma forma, o desenho integra essa trajetória da artista. Sempre esteve lá, mas, assim como a paisagem já foi abordada de forma exaustiva e sistematizada, também o desenho nos últimos anos tem sido investigado de modo mais verticalizado. Suas permutas com outras categorias da produção artística visual, como a fotografia ou o vídeo, sustentam estudo recente – prático e teórico – com grupos de alunos ou no cotidiano do ateliê.
Nesse duplo contexto, o da persistência da paisagem e o da lida com o desenho, calhou de Teresa se deparar com a gravura. A partir de experiências com matrizes de metal, em 2013, na Fundação Iberê Camargo e no Museu do Trabalho, em Porto Alegre, (e não só com a ponta-seca, mas também com a água-forte e a água-tinta) a artista teve a sorte de, mais uma vez, pesquisar o tema da paisagem e o das vizinhanças do desenho.Daí o formato da gravura, que era íntimo, se expandiu. A linha curta virou gesto largo. O cinza encontrou a cor. A linha tropeçante da ponta-seca ganhou volume. Ampliado, o quadrado da gravura se tornou módulo. Nisso, inesperada, impôs-se a matemática.
Jovem, mesmo antes da afirmação de seu percurso no campo da arte, Teresa foi professora de Matemática. Aparentemente, esse veio da sua formação nunca pareceu íntimo da criação artística – no caso de Teresa, marcada pela matriz expressionista, liberta, larga, pouco afeita a esquematismos. Pensando bem, já havia uma sorte de ordenamento nas séries em que a artista justapôs janelas e grades com as paisagens. O caso é que, agora, nos seus anagramas, essa percepção – que talvez já estivesse lá, mas à sombra – se irradia. O pendor matemático se faz menos sutil. Vem se combinar com o vigor, a quase violência, que acompanha a ponta-seca.
Em outra ocasião, comentando o trabalho de outra artista, em que o rigor matemático era o próprio vetor (e vertigem) da invenção criativa, citei este mesmo texto de Fernando Pessoa, ao qual retorno mais uma vez. Trata-se de um ensaio breve, em que o poeta português discute como, no ato criador, diferentes forças se combinam, em um esforço da inteligência e suas elaborações. Haveria, supõe Pessoa (já nessa formulação evidenciando seu pendor matemático), três tipos de cultura que alimentam o exercício inventivo: a cultura que resulta da erudição, a que vem da experiência e a que se forma a partir da multiplicidade de interesses intelectuais. A primeira estaria ligada ao “estudo paciente e aturado, pela assimilação sistematizada dos resultados desse estudo”. A segunda teria a ver com “rapidez e profundeza naturais do aproveitamento” de tudo o quanto o sujeito lê ou vê e ouve. A terceira diria respeito à “multiplicidade de interesses intelectuais”, em uma articulação na qual “nenhum será profundo, nenhum será dominante, mas a variedade alargará o espírito” (PESSOA, 1966).
Conclui o poeta dos heterônimos que pode ser tão mais viva a disposição criativa de quem se mantém alerta – disponível – diante da vida, de “todas as artes” e das ciências: “Um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidades de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba”. Sugere Pessoa que nem mesmo aí existiria qualquer paradoxo. “Um poeta que se deu ao trabalho de se interessar por uma abstrusão matemática”, ele argumenta, “tem em si o instinto da curiosidade intelectual”. Essa veia é que, mais do que inspirar, ajudaria a definir o caráter do artista e da obra: “(...) quem tem em si o instinto da curiosidade intelectual colheu por certo, no decurso da sua experiência da vida, pormenores do amor e do sentimento superiores aos que poderia ter colhido quem não é capaz de se interessar senão pelo curso normal da vida que o afeta — a manjedoura do ofício e a arreata da submissão” (PESSOA, 1966).
Acredito que no mesmo artista possam se alternar e se combinar as diferentes vertentes elencadas por Pessoa, e sem que perca esse alargamento do espírito, que, segundo ele, provém da curiosidade intelectual; no caso de Teresa, o processo investigativo tão caro às ciências matemáticas. Na mais recente série de desenhos da artista, conjugam-se o estudo sistematizado, seja da paisagem ou do próprio desenho, a laboriosa atividade de ateliê, marcada, aqui, pelo vigor, pelo ímpeto e pelo desembaraço, e, não menos importante, não menos profundo ou dominante, o instinto científico, matemático. Os desenhos, feito módulos, se enfeixam em um esquema bastante próximo, se quisermos, ao da análise combinatória. Nesse anagrama, o jogo, que não é de palavras mas de imagens, convida a contínuos (porém finitos?) arranjos e rearranjos em que uma linha pode continuar ou interromper a anterior. Com alguma ventura, cada pormenor vai alterar ou atribuir novos sentidos à parte precedente – e ao todo. O vigor gestual estará articulado, com paradoxo apenas aparente, como sugere o poeta, ao rigor matemático.
Eduardo Veras
Crítico de arte e curador independente, professor no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul