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outubro 14, 2014
Dias de lua, noites de tinta por Frederico Coelho
Dias de lua, noites de tinta
FREDERICO COELHO
A lua é um ponto iluminado no céu cuja simbologia é plena de sentidos e representações criados pela humanidade. Buraco negro de deuses e medos, a lua é Jaci e Magritte. A lua é o amor romântico, o delírio das tribos, o desafio da guerra fria. A lua é uma bola redonda branca-amarela-vermelha-dourada que paira no ar, que organiza vidas zodiacais, que muda marés, que fica ao alcance da mão onírica da criança (quem quer ir ao Sol? A criança sempre quer ir à lua). A lua é oriental, ocidental, cruza classes, semeia transes, explode poemas. Crescer, minguar, ser nova ou cheia, a lua é parte do dia a dia de todos – talvez a nossa maior referência visual, já que, ao contrário do astro-rei, podemos fita-la pelo tempo infinito. Na base mais profunda disso tudo, talvez no grau zero desse amor imenso que temos por ela, a lua é uma bola de luz. Cheia ou não, é essa esfera cobrindo a noite que nos fascina.
A pintura de Gisele Camargo apresenta uma operação bem específica e, ao mesmo tempo, generosa em sua busca de imagens e motivos que movam sua obra. Durante um período recente de sua vida, a lua tornou-se uma dessas imagens capturadas pelo seu olhar e transformadas em uma forma quase íntima. Do alto de um edifício com janelas debruçadas sobre a baía de Guanabara e sobre as cadeias de montanhas da cidade, a lua cheia que surgia mensalmente para Gisele foi aos poucos tornando-se parte de uma composição que transcendia qualquer mito romântico. Era a fixação de uma bola perfeita em contraste com edifícios da cidade e suas luzes apontadas para cima. Gisele passou a ver a lua imponente se articulando com as formas do mundo. A dialética histórica entre Natureza e Cultura se manifesta aqui em mais uma de suas muitas versões contemporâneas. Afinal, Gisele é, fundamentalmente, uma pintora de paisagens. E quando a lua vira de vez sua paisagem, novos planos, novas perspectivas, novas superfícies e novos recortes precisam surgir.
Em uma fusão sugestiva de forma e conteúdo, a flutuação do satélite também se torna uma flutuação dos suportes em suas montagens compartimentadas – formato que aponta cada vez mais um caminho sólido de pesquisa e consistência na obra de Gisele e cujo passo decisivo foi o início de suas Cápsulas(2013). Sem lugar fixo em um suposto céu, sem necessidade de representar a luz, sem ter que reivindicar uma alegoria pictórica, a lua aqui assume sua força gráfica e torna-se elemento narrativo em sutis jogos de aproximação e rasura entre os outros planos da pintura. Nuvens, sólidos, líquidos, todos modulam a lua, assim como modulam as cores. Ampliando outro dado central em sua pintura, Gisele também escava o espaço, cria buracos sem fundo, insinua saídas para o nada, cria planos que não se estendem para além de seus limites abruptos. Suas retas produzem uma arquitetura onírica em paisagens que nos deixam no impasse entre estarmos vendo a lua no céu ou estarmos pisando na própria superfície lunar.
As obras dessa Noite Americana são, portanto, um convite para um passeio do olhar em suas múltiplas perspectivas. Gisele nos apresenta pontos de vista que conservam a cena, porém nos oferecem a possibilidade livre da edição – ou síntese – dessa paisagem. A lua, mais do que assunto das pinturas, é um tema a mais de fruição da aventura e do experimento que é pintar. Sem esconder o fascínio pelo ícone, não se furta em apontar para o seu lado escuro, pleno de vazio e mistério. As solidões e fundos negros são a marca de uma pintura que se guia por procedimentos, por um pensamento muito pessoal sobre forma, plano, superfícies, volumes, atingindo um equilíbrio entre figuração e abstração. Aqui, temos jogos entre profundidades, tonalidades, texturas (diferentes tintas, diferentes técnicas), em um mundo que muita coisa acontece e nos permite mergulhar sem foco obrigatório. Talvez o que nos faça encontrar uma unidade no conjunto é a disposição de Gisele em se aprofundar em uma abordagem autoral de pintura, em propor situações ao nosso olhar a partir de uma geometria que, ao invés de esquadrinhar o mundo, o abre para novos espaços poéticos.
Em nossas conversas ao redor desta exposição, Gisele falou algumas vezes do filme de François Truffaut que a batiza. Não pelo filme em si, mas pela ideia do cineasta de jogar com o nome da técnica que simula em um estúdio de filmagem, durante o dia, uma cena que precisa ocorrer à noite. Ter como mote esse efeito de noite simulada, de uma lua que não precisa da noite para surgir, de um dia que pode perfeitamente ter a lua em seu céu, ou até mesmo de uma lua que simula noite no dia claro do ateliê, é a força central da exposição. Gisele exercita uma forma (a esfera / a lua), aprofunda os múltiplos sentidos que essa forma sugere dentro de seu vocabulário pictórico, experimenta conexões e aproximações entre diferentes aspectos espalhados em seus suportes ao longo de sua trajetória. Se foi Truffaut e seu filme quem deram o título da exposição, trago por fim a frase de outro cineasta, o brasileiro Ivan Cardoso, quando em seu filme Nosferatu no Brasil (1972), precisava filmar a história de um vampiro no Rio de Janeiro. Em super-8 e sem recursos para criar “noites americanas”, Cardoso resolveu o impasse orçamentário e estético com a seguinte frase na abertura do filme: “Onde se vê dia, veja-se noite”. Que sejam feitos simultaneamente dias e noites de Gisele nas amplas obras dessa exposição.