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setembro 20, 2014
Coração tão branco por Enrique Juncosa
Coração tão branco
ENRIQUE JUNCOSA
Miquel Barceló:
Pinakotheke Cultural, Rio de Janeiro, RJ - 24/09/2014 a 09/11/2014
Pinakotheke São Paulo, São Paulo, SP - 29/05/2014 a 12/07/2014
Uma das últimas séries de pinturas de Miquel Barceló, e falamos no plural porque a capacidade de trabalho deste artista é lendária e sempre está concentrada em vários projetos ao mesmo tempo, são alguns cadernos brancos que na aparência aproximam seu trabalho da abstração. Não é esse o caso, entretanto, tal como provam seus títulos, que sugerem leituras figurativas ou metafóricas. Algumas dessas obras apresentam imagens de círculos, mas levam nomes de arenas de touros, e outras se referem à espuma das ondas do mar, ilustrando ainda em ambos os casos o comportamento da matéria e dos pigmentos sedimentado em camadas. Ação arriscada em solidão – o artista só, como um toureiro na arena –, mas também contemplação hipnótica da natureza e das possibilidades da pintura, o que pouco tem a ver com a abstração monocromática, seja esta formalista ou uma exploração do sublime. Além disso, existe uma identificação do artista com a imagem resultante: trabalhar é centrar-se, para conseguir algo como um círculo perfeito, mas também repetir-se, como as ondas, sempre fascinantes e sendo diferentes ao mesmo tempo semelhantes. Imagens que poderiam ser olhos, centros, círculos, mandalas, alvos, rodas, planetas, e também imagens estáticas e hipnóticas do movimento perpétuo, tudo obtido mediante uma mínima intervenção do artista manipulando os processos físicos de solidificação da pintura. Ficção, sim, mas também reflexão sobre ela, como em Coração tão branco, um dos melhores romances de Javier Marías, publicado em 1992, e que trata de forma hipnótica sobre o segredo e sua possível conveniência. Nele, Juan Ranz, seu protagonista, prefere não saber, pois é consciente das complicações, inclusive perigos, que podem levá-lo ao mero ato de escutar. Ao começar o livro, e durante sua viagem de lua-de-mel, Ranz ouve uma conversa na recepção do hotel em que se hospeda com sua mulher, e isso é um presságio para coisas terríveis. O branco do título do romance, depois entendemos, refere-se à saudosa primeira infância.
Pensando nestas últimas pinturas de Barceló e considerando a totalidade de sua trajetória, onde o branco apareceu de forma dominante em várias ocasiões – e de fato deu lugar a algumas de suas mais célebres séries, como as paisagens desérticas do final dos anos 1980 –, me ocorre que é possível que Barceló recorra a esta cor, em momentos precisos, com a vontade de fazer “tabula rasa”, de voltar para o início, como se fosse possível se esquecer da quantidade retumbante de imagens já criadas por ele. Não se trata de corrigir erros, mas sim de voltar ao sentimento de prazer e descobrimento implícito na primeira vez. Agora, além de fazer “tabula rasa”, Barceló parece estar encerrando um ciclo – e esta é uma das últimas imagens recorrentes, como dissemos –, pois estes últimos quadros remetem a al guns de seus primeiros trabalhos, os realizados entre 1978 e 1980 e que tinham a ver com processos e com o comportamento da matéria. Então transformava látex e pigmentos em receptáculos de madeira – que também eram por fi m os marcos dos quadros –, que ao secarem fissuravam e mudavam ligeiramente de cor. As imagens resultantes tinham algo de paisagens, desde céus estrelados noturnos a desertos ressecados de superficies quarteadas. Nessa época também produziu livros de pintura, talvez afirmando uma vontade, que depois se torna constante, de ler a matéria.
Creio que é interessante aqui elaborar uma breve história da cor branca na trajetória do artista. Ainda que na realidade fosse um branco sujo, a cor aparece de forma ocasional em algumas obras iniciais, como Perro de poeta (1985). Nela, vemos um cachorro solitário, estirado em sua casinha em frente ao mar. Ao seu lado, há uma árvore sem folhas e espinhas de peixe bem limpas, e parece que tudo está tomado de neve, pelo menos é uma imagem da desolação. O branco sujo, neste caso, azulado, também é dominante em La rosa blanca (1986), onde vemos o artista dormindo, debruçado sobre uma mesa junto aos seus desenhos, que se agitam em seu sonho criando um turbilhão em forma de rosa que começa a arder. E também domina o branco em Oú sont-ils tous mes dessins? II (1986), a imagem de um redemoinho que parece absorver todos os desenhos do artista. São de meados dos anos 1980 também, continuando com esta enumeração, vários quadros brancos e pretos, como Le début du fi lm (1985), onde vemos o interior de um cinema durante uma projeção e onde uma tela é branca, puramente luz. Ou Bibliothèque avec bougie (1985), onde um personagem, provavelmente outra vez o artista, lê à luz de uma vela, que ilumina também com uma luz branca, os livros que têm por trás, revelando assim os nomes de alguns de seus autores. Em Fum de cuina (1984), por último, a fumaça que sai de algumas frigideiras é branca.
Pouco depois, e em 1987, Barceló começa a pintar os chamados quadros brancos. Os primeiros, se não estou enganado, foram os que compõem uma série intitulada Improvisació, pintada em Maiorca, onde vemos taças de vidro e algumas frutas refletindo-se sobre ambíguos espaços, ou superfícies, brancos, que sugerem miragens. No mesmo ano, Barceló viaja para Nova York, onde fi cará vários meses – a única estadia longa, até a data, nessa cidade de um artista que se sente mais à vontade na Europa ou na África. Lá continua com os quadros brancos. Primeiro pintará imagens de cerâmicas e estátuas clássicas, apenas entrevistas, e cobertas por camadas de pintura, como em Memorial soup. Depois virão outros quadros em que desaparecem inclusive qualquer dessas imagens manchadas, e em seu lugar só sobram buracos e fendas, como em The crack-up ou Eight poles. Estes quadros seguem outros, repletos de referências culturais, seus cenários de cinema, bibliotecas, cozinhas, museus ou seu ateliê de pintor, e pressupõem um panorama inesperado de seu trabalho, embora como vimos o branco já havia feito sua aparição com certa frequência.
No início de 1988, Barceló viaja a Mali atravessando o Saara a partir da Argélia. Será a primeira viagem à região, aonde chegou a ter, como se sabe, um estúdio no País Dogon, lugar que foi depois a origem de centenas de desenhos. A experiência do deserto, nessa primeira viagem, irá impactá-lo muito, como o mesmo contou mais de uma vez, e ao voltar da África, seus novos quadros serão ainda mais brancos que os quadros de reflexos, cerâmicas, fendas e buracos. Estes quadros, que incluem obras como Coprolithes I ou Piedra blanca sobre una piedra negra (ambos de 1988) são paisagens esmagadas pela luz, onde cada pedrinha que aparece tem sua sombra, transformando-se em um acidente geográfico considerável. Barceló continuará pintando quadros semelhantes durante três anos, até 1990. Alguns desses se afastam da representação paisagística para sugerir vistas siderais ou estranhos enxames de insetos formando uma espiral. Por último, ainda em 1990, e depois de uma viagem aos Alpes Suíços, Barceló pintará outros quadros brancos que apresentam imagens de glaciais, como a série intitulada Roseg gletscher.
Barceló sempre documentou sua forma de trabalhar e os lugares por onde o fez. Um dos seus colaboradores nesse aspecto é o fotógrafo Jean-Marie del Moral. Existem, portanto, fotos do final dos anos 1980, nos diferentes estúdios do artista em Paris e Maiorca, que mostram Barceló pintando com vários pincéis unidos, que lhe permitiam cobrir a superfície dos lenços com grandes varreduras de pintura branca. A sensação, ao contemplar estas imagens, é que o artista está apagando ou rasurando algo. Vem daí a ideia de fazer “tabula rasa”, à qual nos referimos antes.
Mais adiante, em 1992, Barceló pintará uma série de quadros menos conhecida, intitulada em catalão Rovegavoreras, o que talvez poderia ser traduzida como Mordendobordas. Trata-se de quadros de grande grossura matérica, vazios de imagem em seu espaço central, e com algumas bordas irregulares formadas por diferentes camadas de papéis colados. Parecem quadros que sofreram um processo centrifugado que eliminou todas as imagens possíveis. Alguns deles também têm algo de ossuário, e de fato em alguns aparecem também caveiras ou imagens de estratos arqueológicos. É também desse ano um retrato de corpo inteiro de sua mulher grávida, Cécile de 9 meses, onde tudo é branco, com exceção de uma linha horizontal azul na parte inferior, que sugere o chão ou o horizonte. Esta pintura nos oferece uma imagem do que está por vir.
Mais adiante, durante o tempo em que Barceló viveu em La Graciosa, uma pequena ilha vulcânica do arquipélago canário onde estava realizando gravuras, Barceló pintou a espuma do mar em quadros onde se representavam as ondas quebrando na beira do mar. Esses quadros, sem dúvida uma homenagem a Gustav Courbet, um dos artistas fetiches de Barceló, incluem obras como Gran rebozo (2001) e Sabonera (2002). O artista pintou depois animais brancos: ursos polares, como L’Ours blessé (2000), e gorilas, como Gorille blanc sur la plage (1999), neste caso uma referência ao célebre gorila albino, chamado Floquinho de neve e que viveu muitos anos no zoo de Barcelona depois de ter sido capturado por caçadores espanhóis na Guiné Equatorial. Em 2004, Barceló pintou outra série de quadros em preto e branco, em cujas superfícies de alguns havia colado folhas de jornais, incluindo obras como Amozir ou Noir sur blanc sur noir (Infralitoral). E ainda mais recentes, a partir de 2005, são um grupo de quadros brancos que moldam vanitas com crânios e fósforos apagados, como Crâne aux allumettes (2006).
Por último, no Pavilhão Espanhol da Bienal de Veneza de 2009, Barceló apresentou, entre outros, dois quadros brancos de grande formato, Mare tranquilitas e Mare nectaris (2008), de novo sobre o ritmo e a forma das ondas admiradas de uma praia. O tema das ondas e da espuma do mar, iniciado nas Canárias, e depois com esses dois grandes quadros exibidos em Veneza, é o ponto de partida dos últimos quadros brancos que Barceló pintou desde 2012, tal como os apresentados aqui.
Trata-se de quadros, em sua maioria, monocromos, embora com alguma variação, já que em algum há lápis-lazúli, por exemplo, e em outro, talvez originado por um acidente, vemos um mero ponto preto diminuto que lhe dá título Plage avec petite tâche noire (2012). Também, como dizíamos no começo, há quadros que mostram círculos, imagens de explosões ou implosões, que costumam ter como títulos nomes de arenas de touros ou temas taurinos. Sol y sombra (2013) se refere à região em que alguém pode se sentar numa arena de touros, onde os ingressos são mais baratos se você se sentar ao sol. La Macarena de Felanitx (2013) se refere à pequenina arena de touros que existe no povoado onde o artista nasceu. Antes, havia intitulado outras obras Las ventas, Les arènes de Nîmes ou La Maestranza (todas de 2012, e nomes de arenas famosas). Acredito que estas obras possam ser metáforas da solidão do artista, como a do toureiro, enquanto trabalha, mas também de sua autonomia. Comentando Digression vide (2013), um círculo em uma paisagem horizontal, Barceló fala precisamente do ateliê como uma ilha, e também como um mundo completo, onde encontra tudo o que precisa para sobreviver.
La huitième vague (2013), um dos quadros de ondas brancas é, seguramente, uma homenagem ao grande pintor russo de marinhas do século XIX Ivan Aivazovsky, cuja obra mais célebre seja talvez A nona onda. Un petit mouton (2013) também é uma visão do fluxo das ondas moldando um horizonte, e seu aspecto sempre mutável. A brancura das ondas como os cordeiros em uma paisagem. La nature des cavernes (2013), por outro lado, refere-se à forma em que se criam muito lentamente as estalactites e estalagmites, causadas por distintas camadas de sedimentos, e de fato este quadro tem o aspecto de uma maquete orográfi ca dos limites de um planalto, e sugere que o quadro está em movimento permanente. Por último, Friture de poisson e Gousses (2013), introduzem elementos figurativos, peixes e vagens de legumes. A exposição inclui também alguns quadros de frutas e tomates partidos, que contrastam com os quadros brancos por sua intensidade cromática, pois são em sua maioria vermelhos. Em um desses quadros, o intitulado Tomate- Mars (2013), um jogo com o nome que se dá ao planeta vermelho, Marte, a metade do tomate que vemos tem algo de planeta habitável, com um interior que sugere movimento perpétuo, como uma caldeira em ebulição.
Barceló produziu suas primeiras cerâmicas no Mali, em 1995, durante alguns dias de um vento forte que lhe impedia trabalhar. Foi uma revelação. A partir daí, e depois de aprender técnicas em Maiorca, França e Itália, a cerâmica se transformou num dos aspectos fundamentais do seu trabalho. Em 1999 se organizou a primeira exposição dedicada a seus trabalhos neste meio e depois se seguiram outras. E, claro, Barceló realizou os espetaculares murais cerâmicos da Capela do Santíssimo, no interior da Catedral gótica de Palma de Maiorca. Algumas das cerâmicas de Barceló são produzidas a partir de formas de vasilhas tradicionais, mas em outros casos constituem verdadeiras esculturas, tanto de formas abstratas como de formas reconhecíveis, como por exemplo alimentos (pão, frutas) e animais. Suas cores são majoritariamente terrosas, e em muitos casos têm buracos ou fendas, o que sugere uma fragilidade que na realidade não têm. Barceló inventou uma série de instrumentos para trabalhar o barro e obter os efeitos desejados. Em suas cerâmicas, aparece o humor, como em Jo bussejant (2011), um autorretrato mergulhando, Heràldic (2011), que tem algo de figura com capacete, ou Estrangulador amb fi l blau (2011), que mostra uma forma de garrafa que foi estrangulada com um fio azul, tal como se pode ver, antes de seu cozimento. Às vezes há figuras em suas superfícies, como em Animals de cap fort (2012), que remetem a certas imagens tântricas do budismo tibetano. Barceló certamente viajou pelo Himalaia indígena em várias ocasiões há pouco tempo. Podemos imaginar, com isso, que estes temas se desenvolverão mais em um futuro próximo.
As cerâmicas mais inovadoras que apresentamos aqui, neste livro são pretas. Foram produzidas a partir de uma forma inventada pelo artista. Uma vez cozidas, foram colocadas nas chaminés do forno e ficaram cobertas da fuligem proveniente da fumaça. Depois, fixou a fuligem com um fixador transparente, mas o aspecto continua sendo frágil, como se fosse desprender se alguém as sustentasse com a mão o tentasse limpá-las com um pano. Bestiaire sur urne fermée (2013) pertence ao grupo de inspiração tântrica, sugerindo ritos funerários. Papaye e Les oignons noirs (ambas de 2013) utilizam imagens vegetais, tão frequentes na obra de Barceló, e que transformam as cerâmicas em vanitas tridimensionais. Por último, Théorie verticale (2013) corresponde a outra família de cerâmica que tem a ver com metalinguística. Aqui uma linha branca vai ascendendo sobre os volumes curvos da obra. Algumas cerâmicas, tal qual na obra de Joan Miró, serviram depois para a realização de bronzes, e aqui são apresentadas duas delas, Gladiol e Estatuària eqüestre (ambas de 2014). A presença do bronze se completa com Elefandret (2007), uma obra sobre o equilíbrio, e L’Allumette (2005).
Por fim, cabe destacar que esta é a primeira vez que Barceló expõe numa galeria privada do Brasil, embora sua obra já tenha sido vista aqui em 2000, em exposição realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e em 2002 em uma retrospectiva que incluía pinturas, mas também esculturas e desenhos, exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo.