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agosto 6, 2014
Rubens Gerchman – Com a demissão no bolso por Eugenio Valdés Figueroa
Rubens Gerchman – Com a demissão no bolso
EUGENIO VALDÉS FIGUEROA
Rubens Gerchman - Com a demissão no bolso, Casa Daros, Rio de Janeiro, RJ - 09/08/2014 a 08/02/2015
Existem coisas que não conseguimos ter em quantidade suficiente e muito menos o tempo todo. Talvez por isso, entre 1969 e 1970, enquanto estava em Nova York, Rubens Gerchman inventou um modo de levar no bolso uma porção de mundo.
Foi Hélio Oiticica quem batizou de pocket stuff (coisas de bolso) aqueles poemas-objetos que cabiam na palma da mão e garantia que, desde as Marmitas, as Caixas de morar e as Cartilhas em superlativo, a obra de Gerchman havia evoluído para a ideia de um engenhoso “construa o próprio jogo” portátil. Como metáforas sensoriais, ele colocou pequenos cubos de plástico em uma caixa de madeira, cada um identificado com palavras de espaçosa e escorregadia subjetividade: VOCÊ, EU, SOS, ERVA, BRANCO, PRETO, CORES, HOMEM, SANGUE, SOL, CÉU, MAR… E essa mínima provisão de sensações, tão intangíveis quanto inefáveis, poderia servir como um tipo de talismã para levar consigo, a qualquer lugar e a toda hora.
Um ano mais tarde, em uns versos que intitulou “Pela rachadura”, Gerchman enunciou algumas das estratégias com as quais retornaria equipado ao Brasil: “…corte primeiro na superfície (...), preparado para mergulhar (…) procurar no cosmos o macro no micro, sementes procurando caminho entre pedras, ser líquido bastante para brotar, numa racha do asfalto…”.
A necessidade de transcender o aflitivo imediatismo da cena brasileira na última década da ditadura militar e o desejo de criar um espaço para o encontro e a reflexão sobre arte contemporânea foram o que motivou Gerchman, em agosto de 1975, a considerar a proposta que recebeu de assumir a direção do então Instituto de Belas-Artes do Rio de Janeiro. O dramaturgo Paulo Afonso Grisolli, recém-designado diretor de cultura da Secretaria de Educação do estado, o havia indicado para o cargo, mas Gerchman ainda não estava totalmente convencido. Lina Bo Bardi lhe disse: “Aceite! E, se achar que deve sair, então peça demissão”. Gerchman conta que escreveram juntos sua carta de renúncia e, pronto para apresentá-la a qualquer momento, levou-a já assinada durante vários anos em seu bolso, como um pocket stuff. Não era um gesto de descompromisso, mas sim de autonomia, de liberdade de escolha.
Não é possível separar as inquietudes artísticas de Gerchman das propostas pedagógicas que ele introduziu na Escola de Artes Visuais do Parque Lage na época. A interseção de ambas as atividades foi nossa bússola no modo de ordenar e relacionar a documentação disponível e de orientar as entrevistas que alguns de seus colegas generosamente ofereceram. Uma das grandes contribuições de Gerchman foi ter reunido um quadro de talentosos professores e colaboradores, afins com o propósito de “des-academizar” a escola e transformá-la em laboratório. Para estimular “novas formas de pensar”, a escola que Gerchman propunha dava prioridade à criação de vários canais e fluxos de informação, que circulavam em diferentes níveis e serviam para consulta e reflexão de professores e alunos (ou “usuários”, como o artista costumava chamá-los) em suas ações dentro e fora da escola. Com as conferências-espetáculos e outros eventos, a informação se transformava em matéria-prima fundamental para o exercício do pensamento crítico. A vontade de atualizar-se constantemente não se referia apenas aos “depósitos de informação” nem aos conteúdos temáticos ou ao repertório de exercícios pedagógicos no programa de oficinas; Gerchman sustentava que o próprio projeto da escola devia ser reformulado a cada semestre, o que incentivaria a noção de arte entendida como campo cognitivo e investigativo: “A viabilidade da escola reside em sua capacidade de considerar cada aluno um pensador individual, um propositor e descobridor do que a arte é”. O trabalho com o corpo, com o cotidiano, o convívio e o lazer como ferramentas educativas, o transdisciplinar e o pluridimensional foram algumas das estratégias que abriram espaço para o debate sociocultural e para um critério formativo experimental que, sem excluir os “domínios da técnica”, não ficava reduzido a ensinar a “fazer” e se ocupava igualmente de ensinar a “ser”.