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agosto 5, 2014
Fernando de La Rocque | tudo o que é mais sagrado por Vanda Klabin
Fernando de La Rocque | tudo o que é mais sagrado
Amar a linha ondulada, fundir-se e dobrar-se com ela.
Se existe uma consciência dançante... E.M. Cioran / O Livro das Ilusões
Fernando de La Rocque apresenta um conjunto de obras, em sua maioria inéditas, onde a presença do corpo, transformado em um dispositivo pulsional constante, é alvo de sucessivas condensações, de uma eterna sucessão de novas formas e de composições rebatidas num exercício constante de expansão. Tudo oscila e ressoa através de uma sensação de movimento, os corpos desnudos vão dando vida à superfície da tela, encaracolando-se em movimentos de massas multicoloridas, entrelaçando-se em variações rítmicas e módulos quase cósmicos.
Explora as possibilidades do movimento de reciprocidade entre as formas humanas em uma totalidade, através de suas representações saturadas. Nada fica quieto ou no seu devido lugar, tudo parece flutuar, é difícil trazê-las para o foco e a tudo adquire um caráter quase performático. Conseguimos ver individualmente cada elemento, apesar de estarem construídos em círculos, em uma forma contida e absorta em si mesma, em unidades ora compactas, ora semiabertas. A pintura parece ser concebida como uma construção, como um arquitetura de elementos corpóreos em suas múltiplas possibilidades compositivas.
Fernando cria uma visão exaltada do núcleo plástico dos corpos, como se as figuras se sentissem desorientadas pelo seu extenuante facetamento, de maneira que parece que contemplamos, em uma única imagem, vários rebatimentos de um mesmo elemento compositivo. As telas são entidades completas e a superfície pintada é íntima e se prolonga como se fosse o fragmento de um cosmo maior. A palpável dança dos elementos corporais cede lugar à uma sensação de desorientação ao tentar capturar o todo.
Nessa espécie de magia íntima de cores e formas, nesse espaço quase táctil, emana uma vitalidade intrínseca por meio da obsessiva escritura pessoal do artista, que vai tecendo a sua gramática sensorial, uma pulsante rede de artérias e tudo indica que estamos participando de um encontro privado nesse espaço. A ordenada desordem dos corpos nus que se estruturam aos trancos e barrancos, nos levam a uma espécie de transe sublime, um fluxo de estímulos estéticos e somos seduzidos pelo encanto dessas dissonâncias visuais.
O corpo, ritualizado em uma sequências de formas espiraladas, uma construção de pequenos universos que se movem em uma espécie de jogo irresolvido contínuo, parecem reordenar a sucessão do tempo como um fenômeno sequencial da projeção de um filme, aquilo que é chamado de afterimage. Em constante estado de devir, os corpos se expõem como a montagem de um mundo, formas por vezes etéreas, frágeis, evanescentes, estruturas galácticas de zigotos e cromossomas que vão pavimentando esse território da sexualidade que não nos deixa encabulados pela contaminação dessa intimidade.
Nesse encadeamento de corpos em uma cadeia infinita de repetições, que são o núcleo de sua obra, Fernando parece afirmar que a vida retorna eternamente, como se cada ser ali representado quisesse viver aquele instante infinitas vezes, um eterno retorno, como uma triunfante afirmação da vida. Os corpos se imprimem e se reimprimem, flexionados sobre si mesmos, ingressam em um certo desconforto acumulativo com a presença de uma intimidade densa e de um clima onírico e delirante por si mesmo num labirinto de sinuosos percursos.
Como nas tentativas de ordenação de uma realidade caótica que encontramos nas mandalas e seus componentes místicos e filosóficos, os trabalhos do artista nos remetem ao envolvimento do homem no mundo em construção, ainda convulso, traz uma sensação de transitoriedade, de que nada é estável, como um intervalo alucinatório em um éden mágico e exótico, a expressão da liberdade e sua unidade com a natureza em cenas existencialmente densas. Os corpos se unem uns aos outros em movimentos ininterruptos em uma dimensão ritual e encantatória.
O olhar intruso do espectador penetra nesse círculo mágico de corpos aglutinados dentro de um circuito de vida. A obra de Fernando de La Rocque nos convida à fruição de suas vivências sensíveis e suas múltiplas possibilidades compositivas geram novos campos para a experiência do olhar.
Vanda Klabin | curadora e historiadora de arte, agosto de 2014.