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julho 6, 2014
Atravessamentos - Raphael Couto por Elisa Byington
Atravessamentos - Raphael Couto
ELISA BYINGTON
A agulha pontuda e curva atravessa a pele do artista que costura tecidos, borda pérolas sobre seu corpo, em uma operação plástica. A pinça puxa a linha, a pele se rompe aqui e ali e deixa pequenas gotas de sangue no rastro do bordado, que desenha sobre o peito a ponta de um coração. Impossível ignorar o aspecto metalinguístico do quadro, enquanto as reações cutâneas e a vermelhidão que se espalha dão a dimensão da realidade da imagem fotográfica, entre dor física e prazer estético.
Há uma forte conotação ritual e sacrificial nesta espécie de cirurgia sem cortes, que busca a transformação do corpo por acréscimos, superposições, substituições estéticas, e opta por elementos estranhos à fisiologia: copos de vidro, tecidos e elásticos, entre outros, que procuram redesenhar os limites do corpo e seus traços característicos. Notáveis os autorretratos que oscilam entre a desfiguração e a refiguração do rosto-escultura.
É uma arte vivida com coragem, literalmente sobre a própria pele, inescapável espelho da identidade, depositária das memorias e marcas que afloram durante a existência. Uma pele reformulada como objeto, sobre a qual natureza e artificio se misturam na busca de outra unidade para o corpo. Pintura e escultura do ser no mundo.
Na escolha de constituir-se em sujeito e objeto da própria arte, Raphael Couto tem urgência em falar da vulnerabilidade do ser humano, da dor, do erotismo gay, das brechas e margens ambíguas do corpo, da experiência do sagrado e profano por seu intermédio. A ideia do corpo ferido e da purificação ritual estão bem presentes para o artista que tematiza, nos seus escritos, as questões iconológicas do corpo de Deus encarnado, oferecido em sacrifício para a regeneração da humanidade, seu papel simbólico estruturante para grande parte da imagética e pensamento Ocidental.
Há um projeto e um desenho que precedem os trabalhos: sejam estes performances feitas para o publico, sejam realizadas somente para a câmera fotográfica. Na série dos patchwork, a obra afirma sua plena participação na historia da arte: costura quadrados de cores primarias sobre a pele, reconfigurando-a com a referencia formal e cromática ao abstracionismo mondrianiano. A este, se superpõe, ainda, o brilho do cetim que traz à memória a sensualidade dos parangolés de Oiticica. Há também a sobriedade nas “suturas” que aplicam o azul e o branco em diferentes transparências sobre o rosado da pele, colorido clássico como em uma odalisca de Ingres ou Madonna de Bellini.
A fotografia passou a ocupar um lugar central nos trabalhos de tipo processual. Outrora mero registro, hoje é parte integrante da criação. Transformou as obras que eram efêmeras e transitórias, por definição, em objeto de arte. A imagem resultante anula o tempo da performance, congela o instante, reconsidera as questões de composição e iluminação, mas consente também uma diferente aproximação do olhar, uma intimidade que deixa ver os poros, as marcas, as reações cutâneas, que acrescentam força dramática à obras que tem como material o ser humano.