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julho 1, 2014
A arqueologia de um acontecimento liminal por Luiz Guilherme Vergara
A arqueologia de um acontecimento liminal
LUIZ GUILHERME VERGARA
O que se revela à primeira vista nesta genealogia dos gestos da Regina de Paula é sua condição liminal enquanto artista e obra – como zona de passagem e transformação de sentidos no mundo. Este obra-acontecimento inaugura um lugar suspenso do tempo onde se diluem pelo sal do mar o sagrado como estado batismal de infância da arte. Regina está sendo levada ou nos leva juntos a esse banho de descarrego literal à beira mar, onde se entrega a um rito de transgressão ou transbordamento mito poético. Nesta condição liminal a artista realiza incisões cirúrgicas, fecundações e transbordamentos entre o corpo da literatura e uma estética existencial. Sem dúvida a Bíblia não é qualquer livro. Assim, Regina não está mais tratando de desconstruir ou justapor fronteiras entre o moderno e pós-moderno, mas do resgate não ainda consciente da experiência do sublime pelo sublime na arte. Sem dúvida neste conjunto de performances são trazidos para essa margem da praia toda a sua bagagem de saberes e fazeres antecipatórios destes futuros, desde as ruínas dos tijolos de areias, do construtivismo ao avesso de sua poética, como também sua arquitetura de desfazimentos de muralhas. Ao mesmo tempo, a artista não deixa de praticar com uma grande dose de resistência e rigor o que implica no “des-criar o real” 1, des-criando também escrituras sagradas em nome da infância do ser linguagem em ação.
Impressiona a todos nós o impulso antropofágico da artista. Com pequenos gestos investe, como conduzida por um transe, no desterramento de textos hermeneuticamente fechados em narrativas religiosas para re-encarná-los de areia e sal enquanto verbos e provérbios contemporâneos.
Abre e rasga os livros, corta-retira suas carnes paginadas, escava cuidadosamente seus miolos para abrir uma entrada / entropia de retorno ao infinito, como se pelo acontecimento único da linguagem des-criasse a própria literatura no oceano. Já não somos mais leitores de letras mas sim da indizível nomeação do sublime. Entramos pela mão da artista por uma brecha “borgeana” esculpida com o rigor do construtivismos universal, para mergulharmos no livro aberto do corpo metafísico ou mítico poético. Descobrimos com a artista um entre lugar-espaço imanente, um ventre profundo por trás das páginas Biblicas. A seguir tudo se cobre de espumas, de areias do deserto e do mar, com infinitos grãos de cristais e de catedrais. Nesta cerimônia performática Regina reinventa, sem querer, a mitologia grega do nascimento de Vênus – ou Afrodite – fecundada pelas espumas e espermas de Urano castrado por Zeus.
Regina de Paula escava em camadas, sem saber, uma arqueologia de si próprio, mas que ao mesmo tempo, abre espaço para as inquietações que acompanham a história da infância da humanidade. Com diz Nietzsche – “em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros?” 2
Neste movimento autopoiético Regina encarna um estado de infância indissociável da fecundação entre linguagem e existência. Tal como Peter Pál Pelbart 3 revisita Agamben 4, Regina traz para sua experiência a “potência do não” pela destruição do aprisionamento da linguagem pelo texto. Como um ser livre ou uma criança, transforma o livro em um corpo de dobras para desfolhamento e, com um sorriso especial, vai escavando suas páginas uma a uma. Após esse desfazimento ou des-criação do livro, Regina faz um resgate existencial do acontecimento do ser - linguagem no mundo. Lança ao quebra-mar palavras “como se” inaugurando mundos religados entre beleza – sublime e carne-espírito.
Assim também abrem-se passagens para os sentidos indizíveis das entrelinhas, dos intertextos de incertezas, fazendo do livro um corpo feminino, um ventre-espaço, liminal da dádiva humana – o demasiado humano - da arte na vida.
Neste conjunto de obras/gestos Regina nos transporta a um legado de manifestações artísticas de desterramento e reterritorializações da arte de volta à terra ou ao mar. Desde o Contra-Bólide de Oiticica às intervenções na paisagem de Katie Scherpenberg, Regina de Paula dá um salto duplo para um horizonte de possibilidades – para o nascimento virgem do oceano-espuma de incertezas. Por isso, ainda não consciente, sua des-criação do testamento é também a dissolução da arte no real - para intuir outros espaços-tempo de micro-utopias indissociáveis dos ritmos entre opostas heterotopias e entropias cósmicas além das palavras.
NOTAS
1 PELBART, Peter Pál. A Potência do Não. Linguagem e política em Agamben. (p. 22) In. FURTADO, Beatriz, LINS, Daniel. Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008.
2 Nietzsche. Das Coisas Primeiras e Últimas. (p 15). In. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para Espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
3 PELBART, Peter Pál. A Potência do Não. Linguagem e política em Agamben. In. FURTADO, Beatriz, LINS, Daniel. Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008.
4 AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.