|
junho 10, 2014
O jardim das elegantes exceções por Oriana Duarte
O jardim das elegantes exceções: um pensar filosófico sobre a obra em vídeo e performances de Paulo Meira
ORIANA DUARTE
Paulo Meira - Nas bordas de silêncio, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, PE - 11/06/2014 a 20/07/2014
Entre parênteses, em referencial texto sobre a imagem fotográfica,é posto que “via de regra, o amador é definido como uma imaturação do artista: alguém que não pode – ou não quer – alçar-se ao domínio de uma profissão (Barthes; 1980).”
Ora, sendo assim, numa atualidade cerceada pelas especializações dos saberes, pelas normalizações de condutas e achatamento das diferenças no esgarçar transparente das relações, dizer-se “amador” é afirmar um não quererque implica em uma atitude outra, atitude de desvio, escolha pelo atravessar da noite mais escura, escolha por ser negligente... Enfim, apostar em um jogo fora das regras. Seráessa, portanto, a aposta do artista Paulo Meira na sua série de vídeos e performances “O Marco Amador”?
Baseando-se em hipotético e sonoro “sim” de resposta, iremos compactuar desse jogo num mover serpenteado entre conceitos e fazeres vindos dos campos da filosofia e da arte. Movimentos de precisas sinuosidades são necessários, também, para realizar uma abordagem da arte debruçada sobre o pensar filosófico que busca retornar a arte não com fins de lhe justificar por colagens conceituais, mas sim como meio de refletir sobre conceitos que amplificam a singularidade do vivido em processos artísticos. Neste sentido é que uma fala sobre errância, soltura do pensamento, coragem - temas que foram abordados por Michel Foucault, filósofo aqui abraçado ao longo das diversas fases da sua trajetória- será o condutor das aproximações entre arte e filosofia.Acessaremos apenas dois momentos da produção foucaultiana, de maneira a estreitarmos as fronteiras entre o pensar proposto no seu conceito de “estética da existência” e a idéia de “experiência limite”, aqui tomada como via de apreensão das performances realizadas por Paulo Meira na série de vídeos “O Marco Amador”.
Dito isso, busquemos experienciar o artista em questão, e para tanto, o momento escolhido não pode ser outro senão aquele quando Meira, ao ser solicitado à escrever sobre uma de suas obras para a coletânea “Um salto no escuro”, desconversa e apresenta, sob o pseudônimo Alice Coelho, uma espécie de verbete sobre si mesmo, no qual diz: “Qualquer abordagem sobre o [seu] trabalho só é possível à partir desta apreensão: ele está em relação com o mundo expondo esforços de constituição de si. Mas ele está nesta relação como quem está em combate por permanecer, mas não se trata da permanência do sobrevivente, e sim do que luta por outras formas do viver, sobretudo, a forma do viver artista (Meira/Coelho apud Tejo; 2011).”
1. Nas dobraduras primeiras do ilimitado
O seu verbete, por sua vez, inspira remetermos à pitoresco episódio que encerra suas atividades de designer, profissão na qual se formou ainda na passagem dos anos 1980 e que, até o ano de 1992, divide com a arte suas atenções no estúdio com o sugestivo nome “Departamento X”. Conta-se sobre um evento de comemoração à bem sucedido projeto, no qual Meira, em certo momento, sobe em uma mesa e declara-se, a partir de então, “somente artista” e mais, a partir dali pintaria anjos. O tumulto seguido a fuga de seus clientes, ainda soa como os risos soltos a ecoar na festa de abertura da sua primeira mostra individual, “Fábrica de Anjos”, aberta um ano após, em 1993 no Museu do Estado, na cidade do Recife, onde até hoje vive e trabalha.
A postura aparentemente nada profissional, como sugerida neste momento da sua vida, momento de escolha, delineia mais do que um perfil de Meira. É mesmo o seu campo de experiência da arte que se esboça neste mododeser que deixa para trás o conforto, se deixando atravessar pelas forças atratoras do risco. Visto assim, para ele, a arte é potencial campo de exercício do sujeito atraído pelas margens, ou melhor, pelo fora. Exemplo dessas forças também se extrai do título dessa mostra primeira, pois “fábrica de anjos” é expressão usada no interior do nordeste do Brasil (região onde nasce em 1966), ao se referir sobre o operar clandestino de abortos.
Essa ambigüidade do pintaranjos, de certo modo, inaugura um traçado que hoje ressalta na sua trajetória artística. Trata-se de uma especial atração pelo bizarro, pelo que está fora das normas e padrões estabelecidos, enfim, pelas imagens das exceções. Assim, é que através da extensa obra em processo “O Marco Amador”, Meira vem constituindo uma galeria de estranhos personagens, comumente companhia de suas performances, nas quais, não raro, são expostas situações que dificilmente, quem nelas se colocar, não sairá por elas afetado, revirado em algum ponto do seu ser e tendo sua visão de mundo, de algum modo, posta à prova.
2. No entra e sai de um jardim de elegantes excessões
Entre essas experiencias, sobressai o momento que Meira, em seu vídeo “O Marco Amador: sessão 15 minutos no jardim de Alice Coelho” (2009) – figura 1-, se transmuda na mítica figura da mulher barbada. Sob uma atmosfera que remete aos freakshows ou ao entra-e-sai (entre-sorts), locais onde se exibiam os corpos inscritos num regime particular de visibilidade, as monstruosidades humanas. Ao acompanhar a agônica solidão que permeia os personagens presentes nesta performance (um mágico, uma modelo de atirador de facas e uma diáfana enfermeira), somos levado a formular as seguintes perguntas: Teria o intento normalizador de igualdade entre os corpos, produzido um outro universo, um universo das diferenças indiferentes? Seria este universo um cárcere do inteligível? E se balbuciamos um sim a tais questões, afirmamos a ambigüidade deste “poder de normalização”, que afirma a singularidade lançando-a numa zona de indistinção – Ora. Melhor deixar assim, e aprimorar nossa vista de soslaio, pois se não encararmos a boca babada da fera, até podemos amansá-la e dar-lhe um apelido dócil, tal como eram chamados os anões em Auschwitz: “coelhos”.
Para melhor nos situarmos nessa experiência, cabe retomar seu citado verbete, quando Meira/Alice Coelho, se refere ao próprio corpo enquanto corpo do mal-estar, do sujeito cindido e multiplicado nele mesmo, corpo de efeito elástico e de carne esgarçada, corpo inflado e tornado campo de guerra. Corpo nada agradável de ser visto, pois treme a nossa frente (Meira/Coelho, op.cit.). Corpo sobre o qual explicita seu estranhamento ao lançarseguinte questão: “Como pensar de outra forma, senão como imagem tremida, todos os Paulos surgidos na saga do Marco Amador? Corpo-balanço, corpo-hélice, corpo-vertigem, corpo-queda, corpo-outro, o estranho, a sombra, o acéfalo.” Esses “Paulos”, como por ele referido, bem podem ser apreendidos enquanto exposição das camadas do espesso invólucro que reveste, na nossa atualidade, os complexos processos de subjetivação.
3. Do outro lado do limite: a errancia
Ainda nos anos 60, Foucault em quase todos os seus livros, bem como nos seus “ditos e escritos”datados até 1966, faz um elogio da literatura através de autores de experiências-limite, tais como, M. Blanchot, G. Bataille, P.Klossowski, Robbe-Grillet, Beckett, Roussel, dentre outros. Sobre esta literatura, é dito marcar a cultura contemporânea com amplos efeitos no campo da ética, sobretudo ao enfatizar experiências no campo da reflexão e criação artística (Motta apud Foucault; 2009).
Não surpreende os textos de Foucault deste período oferecer o sentido ampliado de “experiência” em sua filosofia: algo pelo qual se sai transformado, algo que tem como objetivo arrancar o sujeito de si mesmo, ou chegar a sua dissolução, sendo mesmo uma “empresa de dessubjetivação”. Exemplo desta empresa destaca-se no artigo sobre Blanchot, “O pensamento do exterior”, publicado em 1966, cuja experiência do fora desponta sob o signo da atração. Sair transformado, por sua vez, se constitui nas dobraduras da errância, pois, segundo Foucault (2009), para ser atraído é preciso ser negligente, lançar-se ao espaço vazio que persegue os passos daquele que se lança ao risco. Sendo assim, podemos afirmar o ato de criação, a atitude de arte, que é movimento sem finalidade em direção a própria atração, enquanto experiência errante.
Nas performances apresentadas no vídeo “O Marco Amador: sessão Cursos” (2006) –figura 2–, de olhos vendados, o artista se empenha à seguir instruções ditas em italiano por uma intransigente palhaça cuja, por sua vez, ele lhe confia a vida a beira de um abismo, entre pedras de uma cachoeira, em sentido contrário de uma movimentada rodovia, nas ruínas de uma fortaleza, em um bosque de árvores secas e a beira de um túnel. Essa longa travessia no escuro por ermos cenários de fábulas, é cuidadosamente editada em vídeo alternada a outra performance na qual,o devaneio da palhaça rege um jogo de cabra-cega cujos alvos são cabeças moldadas em argila.
Essas cabeças, por sua vez, são moldadas a perfeição com a mesma face do artista, por isso também se encontram vendadas. E a palhaça grita, susurra e gargalha um ritornelo de comando: “firma; destra; sinistra; piano; sempre; dritto”. Em contraste ao sentido das palavras, o corpo do homem vendado pende inevitável para os lados, dando a perceber os esforços exigidos para manter, neste deslocar-se no escuro, o mínimo que seja da postura elegante delineada pelo eixo vertical. A errancia explícita da entrega ao aparente ilimitado de um jogo de cabra-cega, chega ao ápice quando o alvo éatingido com força por uma barra de madeira. Neste instante, sua condutora enfim o aprova sob aplausos frenéticos e do alvo estourado explode, em meio aos cacos de barro da face do artista, uma revoada de pássaros.
Essa entrega confiante à emblemática figura feminina de uma palhaça, ganha novos contornos quando nos remetemos aos estudos sobre contraconduta apresentados por Foucault em curso proferido no Collége de France, em 1977. Nele, ao investigar as formas de resistência ao pastorado cristão na Idade Média, atenta para as revoltas de conduta ligadas ao problema das mulheres, do seu estatuto na sociedade, na sociedade civil ou na sociedade religiosa, bem como os diversos grupos que se constituem em torno de mulheres profetizas (Foucault, 2008). Neste contexto, surge em uma nota de rodapé, a figura de JeanneDabenton, que dirige no século XII um grupo herético apelidado de turlupins(palhaço grotesco) pelas estranhas roupas que usavam. Tal coincidencia de inscrição, surgida nas tramas de uma História submersa, corrobora o lugar inspirador do feminino por quase todas as obras de Meira. Lugar não circunscrito pelo discurso de gênero, mas antes exercitado nas fronteiras, ou melhor, no fino espaço que delineia o par limite-transgressão fundante da experiencia interior batailleana.
E Georges Bataille é mesmo um autor imageticamente citado no vídeo “Cursos”, isto pois, as performances se alternam na emblematica imagem de um homem sem cabeça – figura 3- remissiva a obra L'Artde Vivre(1967), de René Magritte. Uma voz em off da leitura que o acéfalo faz enquanto vira páginas de um grande livro, acompanha a nervosa manipulação de um globo ocular solto das orbitas e posto entre seus dedos sobre a mesa de leitura. Sabendo da dimensão que o olho ocupa na obra deste autor, Foucault (2009) afirma em seu texto “Prefácio à Transgressão”: O olho extirpado ou revirado é o espaço da linguagem filosófica de Bataille, o vazio onde ele se derrama e se perde mas não cessa de falar. Parafraseando Foucault, não seria este olho que Meira posta entre os dedos de um acéfalo o lugar de uma incessante fala da arte?
Conclusão: Num vôo espiralado, a exposição da vida como obra
O erro e a errancia são temas surgidos, com certa freqüência, na produção de Foucault que precede o segundo e terceiro volume da sua História da Sexualidade, ambos publicados em 1984. Este é o momento em que na sua filosofia emerge o conceito de “estética da existencia”. A pergunta seminal deste feito surge de uma constatação assim dita por Foucault: “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida (...). Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? (Foucault apud Dreyfus, 2010, p.306)”
Tal conceito, se entende, interessa à Foucault pelo questionar ético, pois somos levados a indagar sobre o modo como estamos conduzindo as nossas vidas(Foucault op.cit.) Disto, a singular leitura dos modos de vida propostos nas diversas escolas filosóficas da Antiguidade (seculosIVa.C e I-IId.C) ser feito campo de combate as cristalizações conceituais que, por séculos, cindem o sujeito. Privilegia-se, nesse contexto, o momento no qual as artes plásticas do século XX, sobretudo através do modo de vida de artista, é mencionada como via profícua das investigações queconstituem sua ontologia do presente.
Em aula proferida no Collége de France em 29 de feveriro de 1984, no curso “A coragem da verdade”, o conceito é explorado numa leitura singular do modo de vida dos filósofos cínicos – a vida no estado nú, a vida violenta, a vida que escandalosamente manifesta a verdade. Para Foucault (2011), tal aproximação entre verdade e vida, fundamento de uma estetização da existencia, só é possível de encontrar lugar na nossa realidade através do antiplatonismo insurgente na arte desde o século XIX: “E se não é simplesmente na arte, é na arte principalmente que se concentram, no mundo moderno, em nosso mundo, as formas mais intensas de um dizer-a-verdade que tem a coragem de assumir o risco de ferir.”
Na brevidade desta apreciação sobre as figuras de “O Marco Amador” e na esteira do que aqui chamo suspiro de confiança na arte e no artista, ultimo suspiro dado numa sala de aula de um emblemático ano bissexto, vale destacar uma imagem da vídeo performance “O Marco Amador: A peder de Vista” – figura 4: sobre o artista uma mulher nua e sentada firme em sua nuca; ele vestido de paletó e gravata, óculos escuros, segura com uma das mãos uma grande hélice. Este duplo corpo surge nas mais diversas paisagens da Terra. Ao final do vídeo, já sem seu par, mas instigado pelo desejo de sentir o cheiro deixado pela mulher em sua nuca, inicia um giro sobre si mesmo. Giro animal animado pela hélice que pesa com o intensificar da aceleração do movimento. Giro extremo, até que o corpo em desequilibrio caí – marco que tomba. Talvez porque um marco amador da arte? Amador da vida?
Referências
Foucault, Michel (2008).Segurança, território, população: curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes (Coleção tópicos). ISBN: 978-85-336-2377-4
Foucault, Michel (2009).Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução: Ines Autran Dourado Barbosa; [organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta] - 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitaria (Ditos e Escritos; III). ISBN: 978-85-218-0390-4
Foucault, Michel (2009)A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes – (Obras de Michel Foucault). ISBN: 978-85-7827-476-4
Barthes, Roland (2006).A câmara clara.Portugal: Ediçoes 70. ISBN-13: 9789724413495
Meira, Paulo. Vídeos disponíveis em