|
maio 12, 2014
Leonardo Tepedino - Projeto desenho específico por Marisa Flórido Cesar
Leonardo Tepedino - Projeto desenho específico
MARISA FLÓRIDO CESAR
Kenneth Frampton, Rappel à l´ordre: argumentos em favor da tectônica
“O homem é a medida de todas as coisas”, a sentença de Protágoras reinterpretada pelo antropocentrismo cristão, definiu por séculos o sistema de escala e representação na arte e na arquitetura, do Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci ao modulor de Le Corbusier.
“A medida é a conveniência de um ser a um outro ou a si mesmo”,(1) disse Jean-Luc Nancy. Se a Antiguidade era o mundo da medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron – em que a hybris era a desmedida mensurável -, a medida do mundo moderno e ocidental foi, por sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo infinito de ser cujo fundo é também cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida pelo reflexo de Deus, guardaria também o vestígio de seu criador: o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego e cristão, possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua não-medida. Ou seja, seu antropocentrismo era mediado pelo infinito. Mediação que se reverberaria na representação artística de modos diversos. A noção de medida coloca uma problematização ética do que é o homem e de como ele se relaciona com o outro e com o universo em que vive. É um instrumento simbólico, portanto, de proporção e grandeza, mas também de harmonização e normatização. A ponto de imperadores chineses, como Yu o Grande, terem sua voz como padrão para todos os sons, e seu corpo como referência para a alturas e o peso. A medida do imperador tornava-se assim a norma de todo seu reino, manifestação de suas propriedades físicas e morais.
Em seus trabalhos recentes, Leonardo Tepedino parte de uma unidade de medida singular para construir suas esculturas em madeira. A partir dessa unidade de medida, proveniente de fontes diversas, Tepedino improvisa extensões aleatórias erigidas artesanalmente. O espaço como campo neutro e homogêneo da grelha ideal vai sendo inflectido em confronto com o lugar e a ocasião que a acolhem: teias imprevistas de madeira vão se tramando, como se os rígidos moldes que constringiam homem e mundo – a grelha perceptiva, as estruturas, as coordenadas, a medida padrão – fossem sendo abandonados para restarem na obra como “ruídos de fundo dos cânones”, os rastros dos princípios da arte e da arquitetura. Teias vão sendo tecidas in locco, se desenhando frágeis e incertas, tomando rumos imprevistos, enfrentando a concretude do lugar, suas demandas singulares, a concentração de suas contingências. Das nervuras e linhas, vão se tramando outras teias, por nós e junções, como nexos de acasos cosmogônicos, como “ritos de renovação” em que se enlaçam “construir, habitar, cultivar e ser”. As relações entre projeto e acaso, idéia e manufatura, conceito e processo, construção e desvio, repetição e diferença estão ali interrogadas.
Se na exposição “Tempo-vero” (Cavalariças do Parque Lage, 2012/13), o artista tomou como unidade de medida a matemática do poema de A Máquina do Mundo Repensada de Haroldo de Campos - versos decassílabos dispostos em terça-rima-; para o Mezanino do Palácio Gustavo Capanema, ele parte do modulor Corbusiano.
Marco da arquitetura moderna brasileira, o edifício Capanema foi projetado por Niemeyer, Lúcio Costa, entre outros (1936-943) para abrigar o Ministério da Educação e Saúde. Sua arquitetura segue os preceitos de Le Corbusier. Lá estão seus célebres “cinco pontos da nova arquitetura”, que a formulavam em acordo com as novas tecnologias de construção e seus materiais (como concreto armado): a planta livre, a fachada livre, os pilotis, o terraço-jardim e a janela em fita. Se a estrutura de vigas e pilares independente de paredes proporcionava a flexibilidade dos espaços internos, o edifício suspenso sobre pilotis transcendia a superfície da terra. Liberava-se do plano que relacionava e distinguia o baixo e o alto, o interior e o exterior, a gravidade da matéria e as idealizações da razão projetiva. Se a fachada era a pele transparente e vítrea, o espaço era a dimensão idealizada, extensão fluida e ilimitada que a tudo atravessava para acolher/ construir o homem-tipo para a nova cidade humana. Ao homem tipificado, desprovido de singularidades, destinava-se o acesso e o abrigo absolutos, a reconciliação dos contrários, o domínio sobre os acasos, a exclusão do arbitrário. Como todo desejo de totalidade, como toda utopia do século que se passou, era um desígnio tão grandioso como aterrorizado, tão generoso quanto despótico, já que sem ocasião e lugar para a alteridade, os desvios e as diferenças.
O Modulor de Le Corbusier é a unidade de medida universal do homem (inicialmente com 1,75 m e mais tarde com 1,83 m de altura), em suas várias posturas e funções: um sistema de proporções e de medidas modulares a partir das quais toda arquitetura deveria ser projetada. Referência antropocêntrica que procede do homem de Vitrúvio (“De Architectura Libri Decem / Dez Livros sobre a Arquitetura, escrita no século I a.C. pelo arquiteto romano Marco Vitruvio Polião) e de seu célebre desenho encontrado nos cadernos de Leonardo da Vinci, que se tornaria um cânone das proporções perfeitas do corpo humano, segundo um determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na proporção áurea.
Medida vem do latim modus, modullum no diminutivo, do qual deriva módulo e modelo (medida que se deve seguir). Tepedino parte das alturas definidas, no modulor, a partir dos gestos humanos e universais (sentar, levantar, debruçar-se, estender o braço) para iniciar sua escultura desenho.
Estrutura e aparência, forma e função, esqueleto e pele — pares dialéticos da tradição escultórica e arquitetônica — tecem tensões como prestes a se precipitarem um sobre o outro, como prestes a descortinar e a explorar a falha de uma medida ideal, a revelá-la como impossível. Desenho e desígnio têm o mesmo étimo. No processo de sua tecedura, em seu Projeto desenho específico, as antigas coerções vão sendo afrouxadas como se, em algum momento, o tranquilo desígnio que a guiava entrasse em colapso. É o espaço da galeria que tenta contê-la, que oferece o último limite, a extrema moldura. A estrutura em teia se esparge dos níveis do modulor, debate-se com as coordenadas ortogonais do espaço expositivo, confronta a presença imponente de suas colunas com sua leveza e seu desenho aleatório, rivaliza sua regularidade e introduz uma arritmia - entre compressões e delicadezas, entre asfixias e arejamentos.
E no lugar da luz da razão que guiou os preceitos da arquitetura moderna, que constrangeu o imprevisto e a diferença, o mezanino vai acolhendo “o tear”, o delicado “lugar de honra da mulher e o sol do interior.”
Marisa Flórido Cesar
Abril de 2014
Nota
(1) NANCY, Jean-Luc. Être Singulier Pluriel. Paris: Galilée, 1996. p.205.