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abril 11, 2014
Mariana Felix - Mirì por Emmanuel Van der Meulen
Mariana Felix - Mirì
EMMANUEL VAN DER MEULEN
Mariana Felix, Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ - 16/04/2014 a 17/05/2014
O trabalho de Mirì tem a elegância desses artistas atentos aos detalhes, à transição, que não pretendem argumentar, convencer, mas sim mostrar o que estávamos prestes a esquecer: mistérios simples e cotidianos do corpo, da floração, do contato, do crescimento, da escuta cuidadosa, do sono e do encontro. Mistérios do objeto, da silhueta, da espera, do banho, da cor deixada à sua própria vida e que impregna a tela. Na verdade, a surpresa não é aqui o fruto de uma máquina, de uma produção, mas de um alerta, graças às formas surgidas da terra modelada com paciência, às linhas enérgicas de pintura. Alerta que mescla sem mossa os traços do sonho no cotidiano. Este aqui é, e não é, o cotidiano do artista. É aquele de nossos pensamentos confusos, dessas estranhas associações de ideias, de desejos, de alegrias repentinas que aparentemente não têm qualquer função e que nos transpassam, nos tornam estrangeiros de nós mesmos em um curto instante.
Pinturas, esculturas, entram aqui em nosso campo visual como coisas, imagens − figuras sutis ou cartografias delirantes − que não ignoram o mundo, pelo contrário, não entram em competição com ele, melhor dizendo, inserem-se em seus meandros. Sonhar não é esquecer, é pensar de outro modo, com o que o corpo transporta, o inconsciente sugere, pensamentos-objetos, ideias-órgãos, os quais para nós seria inquietante definir, assustadores às vezes. Com o que a tela, a cor, a terra indicam, Mirì constrói, repertório sem sistema nem ordem preconcebido, um mundo e, um mundo dentro de nosso mundo. Ela vai ao encontro de um povo, de uma tribo, ainda indene contra a violência moderna, das simplificações que a eficácia, o trabalho em série impõem, mas sem preocupação de existir.
Ali onde o olhar contemporâneo é tragado por um fluxo ininterrupto de imagens, onde a narrativa em abismo do real torna-se uma segunda natureza, Mirì sabe olhar, prestar atenção no estranho, no que não é bonito nem feio, no que foi posto de lado. Ela sabe escutar seu coração bater apaixonadamente, puxar o portão do jardim e misturar-se aos jogos das crianças sem fazer a lição. Aliás, cada um sabe que os jogos infantis são muito sérios. É preciso uma força singular e uma grande liberdade de espírito para preservar essa faculdade de maravilhamento, de jogo. Tal como sua técnica ou suas ideias, nisso reside o trabalho de todo artista.
A infância, sim, a infância de Mirì (a nossa também) está certamente presente em seu trabalho, mas sem saudosismo. Sobretudo sob a forma do que se poderia chamar de infância da arte, de um primitivismo lúcido, benevolente, que não reivindica um retorno a uma idade de ouro, a um paraíso perdido, mas a uma preocupação de que o homem continue a ser − apesar da ciência e do saber acumulado − uma criatura enigmática. Nela há alguma coisa de universal e, por certo, de falsamente ingênuo. Essa ingenuidade muito elaborada onde, no entanto, não se revela nenhuma ironia, é a assinatura do artista. Seu percurso denuncia sua experiência de diferentes culturas de modos de vida: Líbano, Brasil, Estados Unidos, França. Daí depreender-se talvez sua facilidade de propor alguma coisa de irredutivelmente humano e aberto. Nota-se também, de modo claro, como Mirì se inscreve em sua época, responde a seu modo às indagações de nosso tempo, sem retórica nem efeitos: O que é que é estar junto? O que é que é travar conhecimento, amar? Será que a solidão nos impede de participar do mundo?
De sua formação no Parque Lage e na Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris, reconhece-se importantes preocupações formais, notadamente em seus quadros, nos quais as dobras da tela, sublinhadas de uma maneira viva, suscitam o desenho e a composição. No entanto, estes indicam um mais além na simples constatação material: deflagração da paisagem que cartografa a energia de um momento em sua cidade, Rio de Janeiro, e mostra um território em expansão. Essas grandes pinturas, autônomas, vêm oferecer assim um cenário singular, quase uma cenografia às esculturas. Estas, realizadas em seu ateliê na Campanha, se prendem à figura, no sentido mais complexo do termo. Divindades silenciosas, “internas”, diz a artista, que as deixa aparecer mais do que ela, não as procura no transcurso de um paciente trabalho solitário. Elas se fazem, se desfazem, para ressurgir de suas mãos.
Tais silhuetas escutam o murmúrio das coisas mais do que elas não apregoam sua verdade. Daí emana uma espécie de xamanismo pop: ao arcaísmo calculado das formas acrescenta-se um cromatismo ora discreto (a cor da própria terra ou do esmalte), ora exuberante, por exemplo quando as cores do arco-íris se oferecem ao belo sorriso de uma caveira. Da conversa com Mirì surgem nomes: Giacometti, Moore, Brancusi, assim como Thomas Schütte e Leonilson. Concebe-se também a vênus de Brassempouoy, ou essas outras vênus pré-históricas, cujo despudor parece evidente. Essas referências importantes indicam, em linha pontilhada, uma orientação: o onirismo da forma, a abertura da obra para interpretações múltiplas, forçosamente subjetivas, mas, sobretudo, o silêncio que as rodeia.
É preciso deixar para cada um a tarefa de encontrar tais figuras, grupos, corpos, de decifrá-los. Trata-se, talvez, de fragmentos de contos, cruéis ou subversivos, de objetos cultuais, singularmente engraçados, de testemunhos de episódios amorosos variados, felizes ou infelizes, de desejos estranhos, novos, de organismos em gestação, de visões. Não obstante, é preciso sublinhar a alegria que esse trabalho passa, alegria de fazer, de deixar aparecer o que estava ali, escondido nas dobras da tela ou nas bolas de terra, formas ou sentimentos. É para uma espécie de arqueologia que Mirì nos convida, e cabe a cada um de nós cavar ali sua própria história.
Emmanuel Van der Meulen
Tradução de Helena Ferreira