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março 21, 2014
Marcelo Solá - amor e agressividade por Agnaldo Farias
Marcelo Solá - amor e agressividade
AGNALDO FARIAS
Durante anos, o preto sobre o branco, mais forte, incisivo, foi a marca registrada de Marcelo Solá. O lápis, a caneta, o pincel, o bastão, a barra de carvão, uma variedade de instrumentos que logo de saída demonstrava seu respeito pela qualidade intrínseca de cada um deles, invariavelmente em preto, atacava a superfície branca do papel ou de uma parede – a ação de Marcelo Solá nunca se reduziu à arena clássica do desenho, a folha de papel-, para sulcá-la através de figuras ásperas, linhas escandidas, cortantes; para manchá-la com borrões, garatujas, traçados regulares realizados com obsessão e descuido calibrado, até o ponto de roçarem o ruído, bordejarem o incompreensível; para até mesmo sufocá-la através de camadas espessas de preto, como uma pele que sobrepunha a outra pele, calando-a parcialmente, mesmo que fosse para delimitar um trecho pequeno, uma região mínima do quadrilátero branco e que passava a esplender como uma autêntica conquista.
Desenhar limita-se com apropriar, tomar posse. Lançamos nossas ideias nos papéis, desenhamos sobre a areia, cravamos nossos nomes em árvores e pedras movidos pelo atávico desejo de estar e permanecer além dos nossos próprios corpos. É esse impulso ancestral que Marcelo Solá toma para si e atualiza. E o realiza fazendo uso da equivalência dos gestos, de um entendimento agressivo de que palavras e frases escritas, silhuetas esboçadas através de linhas de contorno, rendilhados ornamentais, estruturas que enunciam volumes no espaço tridimensional, tudo isso pertence ao âmbito do desenho, tudo isso tem a ver com o gesto gráfico, com a prática de um exercício cuja invenção significou nossa própria invenção. Desenhar é uma ação de raiz dupla: por um lado retém aspectos do visível, por outro implica em lançar e projetar nossas ideias, faz com que ganhem matéria e corpo, coloquem-se à luz.
Trocando a oposição do preto contra o branco que lhe é tão cara, Marcelo Solá foi ampliando sua conquista introduzindo cores até chegar a essa nova série, surpreendente, na qual persevera quase exclusivamente sobre o preto. Sobre um campo onde a luz cessa engolida, onde a claridade é travada pelo mistério das trevas, emergem, luminosos, os gumes e os planos coloridos de seus desenhos. Uma profusão de cores floresce no papel, e também aquém e além dele. Justapostos, intercalados, embora em alguns casos haja interpenetrações e mesmo sobreposições, os motivos como que se ajustam preenchendo os espaços no preto. Há formas arquitetônicas, algumas nítidas outras embaralhadas, que se despacham para o fundo, abrindo perspectivas no plano escuro; há silhuetas e rabiscos, contornos retráteis que se encolhem ou se exaltam em reverberações semelhantes às que encontramos à tona dos lagos; há palavras, letras e números, sentenças variáveis, datas e lugares, que nos levam a espaços mentais e temporais, fazendo-nos deslizar em outros sentidos, como é típico da linguagem escrita; há, por fim, o plano chapado das cores, a expansividade do vermelho e do amarelo, a iridescência do dourado, o retraimento do azul e do violeta, invadindo o espaço que separa nosso olhar da folha de papel ou puxando-nos para o seu interior. Tudo sempre muito agressivo, sempre sórdido, mas também sempre amoroso.