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março 19, 2014
Uma flor para a Maria por Virginia H. A. Aita
Uma flor para a Maria
VIRGINIA H. A. AITA
Atendo o telefone, recém chegada de viagem sem saber dos últimos acontecimentos, e minha mãe me diz, consternada - a Maria, a Maria morreu. Sem entender direito, pergunto: que Maria? A Maria, responde, como se houvesse uma só, ou como se sua entonação já a distinguisse. Mesmo abatida pelos anos e retirada no “seu canto”, era única. A Maria do Iberê? Replico. Sim, soube agora. Tento às pressas ter notícias, chamo alguns amigos, mas já é tarde para que eu possa me despedir. Queria levar-lhe uma flor, não mais ‘aqueles’ bombons que gostava ou livros de poesia (Florbela Espanca, Pessoa, João Cabral), o que já vai tempo não fazia. Me despedir, em verdade, era tentar restituir lembranças tão caras, atualizar num átimo a alegria do tempo dos encontros, dos amigos e asseclas reunidos na casa, aqueles sempre presentes (Eduardo e Marta incansáveis, a Lia, Miriam e ... , e suas assistentes, Helena e Rita) e os que vinham de ‘longe’ (Cristovão, Flávio Tavares, Zílio trazendo notícias do Rio, depois, Augusto Massi preparando com Maria a edição do livro de contos), das agradáveis conversas, das estórias fabulosamente verídicas de uma vida temperada de aventura e risco ao lado de Iberê. Um tipo de amizade assídua e leve que se perdeu com as antigas gerações.
Não esquecerei aquela sala, com as persianas entreabertas, emoldurada pelas estantes laterais até o teto com livros do acervo de Iberê, pequenas esculturas, um busto de cerâmica e uns poucos objetos. Mais adiante um conjunto de bronzes do Chico, próximo da escada, e os gatos esgueirando-se entre cadeiras e pernas. As paredes alvas tomadas por grandes telas exalando uma cor azulada, e de perto, um cheiro remanescente do óleo, que segundo o artista, “nunca seca por completo.” No centro, um sofá cercado de poltronas baixas, meia luz, onde Maria aguardava, alegre e caprichosamente composta, seus convivas habituées ou inesperados que a faziam exultante. A sala era o proscênio da memória, onde o simples ato de narrar a fazia reviver, e as conversas assumiam um tom, não nostálgico, mas revitalizador, investindo de emoção e sentido os dias magros. Ali, o menu de assuntos era variado, dos debates entre Iberê e Ronaldo Brito, que nomeava seus quadros com poesia de Pessoa (“Tudo te é falso e inútil”) a recitais de poesia (Dante Alighieri em italiano), encontro de antigas colegas, ou as mais prosaicas questões como a fuga acidentada do gato Martins. Mas também era conclave, em que discutiam de temas políticos às mazelas da arte, e se confabulavam as iniciativas que levaram ao início da Fundação. A medida em que essas atitudes tomam corpo, e angariam adeptos, as reuniões deslocam-se para o ateliê do artista, ao fundo. Um entusiasmo contagiante, mas também apreensão pelo destino da obra, animava os primeiros encontros, agora formais, com todos sentados em circulo em meio aos apetrechos do ateliê. As difíceis conciliações, harmonizadas com sugestões de Maria Helena, a ‘pauta’ do Martins, o diligente empenho do Justo em administrar os esforços, eu mesma redigindo atas, e tudo ‘ungido’ pela perseverança incansável da Maria, e o apoio assertivo de Jorge Gerdau.
Me detenho a fisgar essas lembranças para de algum modo iluminar este momento, e celebrar sua vida que agora tem o fecho de uma belíssima história. Sou grata por tantas coisas, o carinho, as jantas memoráveis (com vinho, sobremesas, declamações e queijos, ‘à moda francesa’), desde os tempos da Lopo com sua irmã Eunice e a mãe velhinha, as infindáveis conversas noite à dentro saindo às pressas de carona com a Lia. Sobretudo, pelo que aprendi sobre o que realmente significa ‘viver com arte’. Queria sim, não me despedir, mas reencontrá-la junto a Iberê e todos aqueles com quem compartilharam a mais intensa experiência de uma vida pautada pelo convívio dos amigos e os desafios de uma vida dedicada a arte. O vazio da ausência se abranda pela ternura dessa amizade, e a luz cálida que irradia uma vida nutrida de esperança, entrega e um delicado sentido da complexidade humana.
Vejo em seu rosto o mesmo sorriso discreto, no fundo do olhar aquela faísca dos que acreditam, sua sábia ‘escuta’, sua resistência as tantas dificuldades, sua coragem de ir mais longe e arriscar o incerto, sua capacidade admirável de acreditar no talento, e na absurda e inexplicável força da arte de reconstruir a vida, iluminar pontos cegos e contradições e nos restituir a nossa ‘melhor natureza’. Ela, Maria, foi quem primeiro acreditou em Iberê, que alimentou seu sonho e o apoiou incondicionalmente na improvável missão de ser artista no Brasil oligárquico e obscuro da década de quarenta, que acreditou que sua arte devia perdurar e contaminar a quantos pudesse com sua paixão, sua rebeldia intransigente e sentido de vocação. Também fez belas artes e ensaiou suas próprias pinturas, mas escolheu seu papel, de modo algum secundário, de gestora daquele projeto de vida, catalogando cada obra produzida, antecipando o meticuloso trabalho que se seguiria na Fundação. Um dia comentou que cedo se surpreendeu com o súbito desenvolvimento das primeiras pinturas de Iberê, a obstinação e força assombrosa do seu talento: isso era um veredicto. No fundo sabia que o indivíduo genial é mito, que a arte, um ‘ativo imponderável’, tem um custo humano pesado e que vocação é trabalho árduo, a duas e mais mãos, sonho e decepções compartilhados. No Rio, durante os primeiros tempos, morando em uma pensão, cozinhava em um fogareiro, e gostava de contar como fazia cafezinho para as constantes visitas de Iberê, comuns ou ilustres, como Clarice que surgia nas horas mais improváveis para discutir seus últimos escritos. Na viagem à Europa, nem tudo são flores, mas as alegrias compensam, sobretudo os novos amigos. Enquanto Iberê se esmerava em ‘copiar’ os clássicos nos museus, e assistir as aulas dos mestres, reclamando que Lothe “não era tão bom artista, mas um bom e sistemático professor”, ela lembrava o quão elegante era Giorgio de Chirico, “um verdadeiro gentleman”. Sempre achei que entre suas qualidades sobressaia essa abertura às pessoas, às suas peculiaridades e diferenças, mesmo cultivando as amigas do antigo colégio Sacré Coeur, abriu-se ao mundo e soube criar novos vínculos. Se Iberê com sua eloqüência fazia muitos amigos, era Maria que timidamente os acolhia e cultivava. Uma amiga leal que sabia ouvir pacientemente como se nada a surpreendesse.
Alguns dos que se debruçaram sobre a obra de Iberê, observam a importância do atelier como algo mais que local de trabalho - um espaço construtivo, lugar sagrado, de liberdade e experimentação, de confabulações e gestação de formas. O atelier, contiguo à casa, era o recinto em cujo perímetro sua vida gravitava, e no centro da casa, orquestrando tudo, Maria. Na verdade, era ela a ‘sua casa’. Ou melhor, a “arvore plantada na planície” em que alçou seu vôo. Dedica-lhe num poema essas mesmas palavras, “quero nascer nesta arvore, quero subir com seus galhos até o beijo da luz”. Maria foi o lar de Iberê, para onde sempre retornava, onde se reconhecia, e tecia diligentemente, contra a aridez do tempo, entraves institucionais e a impossibilidade do sonho, sua vasta obra. Com inteligência prática ela soube perceber, após sua morte, que a obra precisava de uma ‘casa’, um espaço disciplinado e vivo em que respirasse e pudesse ser vista e atualizada, e lutou pela implantação desta Fundação, hoje um modelo de gestão cultural com Fabio Coutinho. Maria, com seus silêncios, tenacidade entusiástica e profunda reverência pela arte, tornou Iberê um artista possível e sua vontade invencível erigiu em torno dele um espaço de excelência e disseminação da arte que se expande muito além de uma vida.
Virginia H. A. Aita
Pesquisadora em filosofia e critica de arte, curadora independente.