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março 14, 2014
Criando Sempre por Jorge Emanuel Espinho
Criando Sempre
JORGE EMANUEL ESPINHO
Tantas e tantas vezes verificamos - num qualquer percurso artístico de que somos testemunhas -, a coerência e o recorte formal característicos desse criador funcionarem como pragmáticas e invioláveis prisões, que por fim encerram e limitam a própria liberdade criativa do artista. Sua pretensa liberdade fica assim reduzida e rebaixada apenas a uma teórica possibilidade nunca exercida. Se naturalmente esperamos e aplaudimos uma prática livre e inclusiva como parte fundamental da ação do artista, é com frustração e pesar que vemos se vulgarizar um encerramento da sua criatividade bem dentro da própria obra, assim feita percurso a respeitar e prosseguir, assim feita limitação e fronteira, encerramento e repetição. Muitas e demasiadas vezes, o próprio caminhar do artista se faz numa paisagem imutável e esterilizada, em derrapagem de infinito desdobramento dos seus temas e pressupostos, métodos e meios; sem que assim se veja avanço ou diferença, inovação ou aventura.
Questões como as lógicas do mercado ou o reconhecimento são muitas vezes apontadas como responsáveis por essa repetitiva continuidade. Aqui preferimos enaltecer e sublinhar a coragem voluntariosa face ao risco da mudança - que presenciamos fortemente nesta exposição -, e a lúcida autocrítica, como alvos a perseguir e alcançar. Uma positiva ambição criativa da artista promove, nesta mostra, novos experimentos, fazeres e avanços. Será essa, julgamos, a mais elevada razão e motivação do ser criativo.
O trabalho de Gabriela Machado vem do desenho e da pintura - e de uma pintura em que o traço é desenhado, livre, expressivo e grosso, tantas vezes fluido e aquoso -, na manifestação solta de uma energia vital que parece querer ser, desde sempre, o grande sujeito escondido, o grande alvo principal, do trabalho da artista. Reconhecida pelas suas grandes pinturas de flores que sempre recusaram ser apenas isso - e que antes se reconfiguram num aquático escorrimento sensual de côr e de encontro, como exemplos momentâneos e poéticos da força delicada e firme que as habita, suspensas em branco vazio -, a artista apresenta nesta mostra individual o lugar múltiplo em que agora se encontra. Ou melhor, que para si criou e permitiu, generosa e disponível, experimentando e abrindo para si própria - e para nós com ela -, o seu mais novo, desse seu agora.
Poderíamos, na nossa imparável ânsia de nomear, chamar a esse lugar de Cruzamento, pois nele muito se encontra e cruza, e dele muito em futuro já se descobre. Ou Farol, suspeitando e vislumbrando também já outras paisagens, ainda mais longe, a iluminar criando. Ou talvez Sentido, já que o suave tato da mão que mexe o barro, traz outro sentir/saber nesse fazer, que é um olhar novo a experimentar: avançando, tateando, sempre em improviso. Sublinhe-se desde já, que quer seja nas pequenas esculturas ou nas maiores - mais recentes, das quais encontramos um exemplar produzido na própria galeria para esta mostra -, a artista manipula directamente agora, sem tela mediando, a tal força vital que bailava ébria em suas pinturas. Com simultânea intimidade curiosa e descoberta, familiaridade e novo encontro, aprofundamento e maior leveza.
Parece acontecer aqui, e no percurso já longo da artista, uma gradual aproximação ao âmago do acontecimento, seu centro físico, sua origem. Pois se o seu trabalho revelava o resultado pictórico de eventos e manifestações registrados no seu olhar o mundo; agora surge um fazer mais delicado e artesanal, noutro sensível; resultado do encontro com esse mesmo centro. Este centro é, ou torna-se aqui, e claramente reunidos: dispersão e fonte, intenção e forma, corpo e função, lazer e essência. Apetece dizer que, ao contrário de se deixar levar por percursos e passeios lógicos e inócuos pela própria obra, a artista recua em profundidade, avançando: aproximando-se e dando o íntimo corpo que é seu, a esse manancial etéreo de cuja natureza nos foi, ao longo dos anos, sussurrando e discorrendo.
Podemos afirmar que se aqui arriscamos essa difusa fonte enquanto origem de sua obra, com maior firmeza dizemos que para onde esta vai e seguirá será mistério a ser desvendado com incerteza e parcimônia. E talvez seja esta a grande qualidade processual a que assistimos nesta mostra: o raro momento de intersecção e cruzamento entre um passado de leitura do real, e o futuro da sua nova escrita que aqui a artista esboça.
Onde antes se descrevia inventando, agora se cria a construir; onde se cantavam qualidades agora se afirma a realidade, sempre em seu forte potencial infinito. Por fim, o eterno bailado hipnótico da côr e forma, deu lugar ao sumário espesso do que tudo cria: barro, mão, orgão.
Para nós que agora olhamos, mais de longe a querer ver, esta é a fundamental lição de (des)educar o olhar. Talvez para um dia, depois, melhor o (re)criar. Nas palavras de Gabriela Machado, é esse “Olhar Viajante” que aqui se nos apresenta. Orgânico, mais solto, mais fundo e transformado, agora talvez, em Criando Sempre.