|
fevereiro 5, 2014
Cosmogonia de Evany Cardoso por Marisa Flórido
MARISA FLÓRIDO
Em Cosmogonia de Evany Cardoso, a aurora e a noite dos tempos são convocadas sob a “mão sonhadora para uma rivalidade da delicadeza”. Testemunham antigas promessas e desencantos. Suas serigrafias se instalam no espaço expositivo ensaiando a coreografia do universo, ou, antes, nossas presunçosas tentativas de dar-lhe desenhos, medida e contorno, de decifrar elos e extrair analogias e concordâncias entre as coisas e os seres. Uma “não-paisagem”, diz a artista, que constata a impossibilidade de enquadrar o universo em uma totalidade fechada e decifrável.
Por isso os dólmenes, menires e as constelações do zodíaco. São signos primevos, ativadores de ansiados vínculos: entre o tempo prodigioso do princípio, o anúncio de nosso destino e finitude e a passagem dos dias inexpressivos; entre a gravidade desta matéria que nos ata ao solo e o desejo de alcançar as estrelas; entre este ser precário e errante e a agitação febril do cosmos.
Por isso também um grande cubo negro e opaco — em que estão impressas as galáxias e o zodíaco — em meio a uma das salas: é como se, a um só tempo, o cosmos inteiro quisesse ali irromper e seu excesso fosse contido por aquela geometria. Pois se o cubo se refere aos vetores de espaço-tempo da perspectiva euclidiana, ele é também uma caixa preta cuja altura se aproxima à de um homem, tem sua quase medida. A evasão pelas estrelas sonhadoras é então interrompida pelo hermetismo daquele dado. O cubo impõe sua presença física constrangendo e disputando com o espectador o local onde se instala. E se mundo e homem se reflexionam por laços de empatia, a escala um tanto humana do dado rebate-o sem piedade: o homem é algo inescrutável como uma caixa fechada.
A rigidez dos ângulos exatos do cubo é contrastada pela amorfia de nuvens impressas sobre o acrílico. Signo indicial que mostra mais do que demonstra, como disse Damisch, a nuvem escapava por sua fluidez da racionalização da perspectiva, cumprindo um papel ambíguo no Renascimento: a um só tempo mascarava o infinito inimaginável e o designava.
Rivalizam e se enlaçam delicadamente: o fugidio e o inelutável, as bordas e o ilimitado, transparência e opacidade, a cosmogonia do mundo e aquela da arte. Por isso, o uso da própria matéria para imprimir a imagem, como a pedra (carborundo) usada como “tinta” na série Pedras.
Como descerrar mundos pela cosmogonia obstinada, incessante e falha da arte? Como atar nossas ínfimas misérias e desmesurados sonhos à coreografia dos astros que, indiferentes, seguem desatentos seus cursos e rotações? Parece interrogar-se a artista. Sob sua mão “sonhadora e obrante”, mundos ainda não existem ou não existem mais. Existe a “matéria imediatamente”, a matriz da gravura, ela própria origem das repetições serigráficas, o eterno retorno de suas efígies. Como se apenas a repetição existisse, sem qualquer princípio, sem qualquer fundamento originário.
Cosmogonia não evoca a gênese de mundos e seres, mas sua reiterada quase aparição, sua reiterada quase consumação. É nesse quase — em que cabe e se esquiva um infinito — que se alojam suas serigrafias, que se aloja a arte.