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novembro 20, 2013
Guarânia da baía Vermelha por Marcio Harum
Guarânia da baía Vermelha
MARCIO HARUM
Alex Cerveny - Mar interior, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 26/11/2013 a 21/12/2013
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Como as cheias do Pantanal mato-grossense, a exposição Mar interior contou quase com um ano para estar inteiramente formada. Nesta mostra, Alex Cerveny exibe por volta de cinquenta trabalhos, entre pinturas e desenhos, realizados sob forte inspiração acerca do que é a pujança visual da bacia do rio Paraguai, essa localidade ilhada entre o Brasil e a Bolívia, região de infinitas áreas alagadiças, um mar sem costa, maré cheia nem vazante, mas de margens que borram lenta e constantemente o mapa do centro sul-americano. Na busca talvez de um oceano, o Atlântico, vê-se como sobrevoadas de monomotor marcaram o artista durante o período de intenso trabalho, no qual barqueou por sistemas hidroviários, deu aulas de arte para crianças em um projeto socioeducativo e explorou a cavalo um pouco da região da serra do Amolar, nas proximidades de Corumbá (MS).
São dois grupos de obras de dimensões variáveis que compõem a mostra – os “hidrográficos”, que, na ponta do pincel da associação poética, apresentam gestos rápidos, baseados em registros de memórias, pessoas, lugares e momentos ali vividos no entorno pantaneiro, finas aquarelas negras sobre papel branco levíssimo; e desenhos que reavivam fluxos de navegação do caminho fluvial Paraguai-Paraná, esse corte hidrográfico ao longo de 3.500 quilômetros, símbolo do programa de integração continental, que atravessa ao meio a América do Sul. Despontam nessa série figuras de seres metamorfoseados em homem-peixe e duelos de animais complementares – contraditórios, como os do homem versus jacaré –, firmando, assim, pela imaginação do artista, o caráter da exposição. Com a intuição na mira de certos aspectos da cosmogonia guarani, Cerveny evoca com Mar interior a origem do mundo e os fenômenos do surgimento da condição humana em meio à natureza selvagem.
O segundo agrupamento é constituído de cinco desenhos maiores, nos quais aguadas de fundo azul mancham o peso da gramatura do suporte em papel. Uma fina tinta preta de traços suavemente delineados e o uso das folhas de prata caracterizam a série, como se houvesse sido criada por delicados acordes ancestrais de uma harpa cosmológica, ao extroverter em sua grandeza e fragilidade uma rara visão interior sobre a gênese do Universo, na qual estrutura e evolução parecem ser respostas diretas às tentativas de apreensão dos métodos para o estudo dos sonhos.
No conjunto de obras em exibição ainda estão incluídas duas pinturas fortes de paisagem noturna, feitas a óleo sobre a semitransparência do linho. A sós, em meio à natureza, uma índia e um índio, representando em oposição as duas margens de um mesmo rio, como figuras deslocadas e postas na contraordem do tempo cronológico, sugerem repensarmos a impossibilidade real dos encontros, principalmente aqueles que têm sido mediados por toda sorte de anteparos digitais, o que faz a vida desembocar na falta de espontaneidade a que estamos absolutamente sujeitos nos dias de hoje.
Mar interior suscita os antigos conhecimentos a respeito do significado da “Terra sem mal”(Ivy marãey); nas tradições tupi-guarani, indivíduos e grupos que abandonam suas aldeias e saem em busca de uma superação ambivalente, rejeitando a ordem do convívio social, sem precisar de fato da morte como passagem para tal feito, alcançam essa força de transformação pela prática de exercícios migratórios e de caminhadas sem rumo. Ao deixarem para trás a coletividade da aldeia e o peso de ser homem, sofrem de uma transmutação de homens em deuses, conquistando sua entrada para habitar, enfim, a “Terra sem mal”.
Guarania of the red bay
MARCIO HARUM
Alex Cerveny - Mar interior, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 26/11/2013 til 21/12/2013
As the floods of the Pantanal in Mato Grosso, the exhibition Mar interior counted on nearly the number of months in a year to be fully formed. In this exhibition, Alex Cerveny displays around fifty works, including paintings and drawings, having been done under strong sensitive inspiration about what is the visual strength of the Paraguay River basin, this isolated location between Brazil and Bolivia, endless wetlands region, shoreless sea, without high or low tide, but of margins that blur slowly and steadily the South American map. In search of perhaps an ocean, the Atlantic, one sees here, therefore, how single-engine airplane flights over a period of intense work-in which the artist navigated through waterway complexes, gave art lessons to children in an socio-educational project, and explored some of the region of Serra do Amolar mountain range, near Corumbá [Mato Grosso do Sul] on horseback-left their mark on the artist.
There are two groups of works, of varying dimensions, that make up the exhibition: the “hydrographics,” which in the brush tip's poetic association, feature quick gestures based on records of memories, people, places, and moments there lived around the pantaneiro locale, thin black watercolors on light white paper; drawings that rekindle navigation flows of the Paraguay-Paraná waterway system, this hydrographic path over 2,175 miles, symbol of the continental integration program, that runs through the middle of South America.
In this series, figures metamorphosed into man-fish and duels of complementary-contradictory animals-like man versus alligator-stand out confirming, by the artist's imagination, the character of this exhibition. Aiming at certain aspects of the Guarani cosmogony, Cerveny evokes with Mar interior, instinctively, the origin of the world and the phenomena of emergence of the human condition amid wilderness.
The second group is made up of five larger drawings where blue background washes stain despite the paper's thickness. A thin black ink, with softly outlined strokes, and the use of silver leaves mark the series, as if they had been created by delicate ancestors chords of a cosmological harp, revealing, in its grandeur and frailty, a rare inner vision about the genesis of the Universe, in which structure and evolution seem to be direct answers to the attempts of apprehension of methods for dream interpretation.
Among the works on display, there are two strong paintings of nocturnal landscapes, made with oil paint on translucent linen. Alone, in the midst of nature, a pair of South American Indians, man and woman, represent, in separate opposition, each of the two banks of the same river, being suggested as displaced figures and put on counterorder of chronological thinking, making us reevaluate the actual impossibility of meetings, especially those that have been mediated by all manner of digital apparatuses, which make life result in a lack of spontaneity, to which we are absolutely subject these days.
Mar interior raises the ancient knowledge regarding the meaning of “Land without evil” [Ivy marãey], in which, in Tupi-Guarani traditions, individuals and groups searching to overcome, rejecting the collective order, and practicing migratory exercises have abandoned their villages to go against the grain, without need of death as passageway for becoming gods themselves, therefore winning their entry, at last, to the “Land without evil.”