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novembro 14, 2013
O Instinto Inibido por João Guarantani
O Instinto Inibido
JOÃO GUARANTANI
A produção artística de Alice Quaresma tem explorado aspectos de suas memórias mais intimas e exposto sua identidade cultural e pessoal de maneira singela, e ao mesmo tempo reveladora. O dia-a-dia doméstico e objetos cotidianos são escrutinados pela artista, e compõem construções estéticas de intensa beleza. São exemplos desta produção séries como “Memórias” e “Raízes”, esta última resultado de sua recente residência artística no Barracão Maravilha. Em BICHOS, contudo, a artista se distancia deste ambiente familiar com o intuito de revelar novos significados e aprofundar sua investigação visual. Por sua complexidade técnica e temática, BICHOS representa uma nova etapa na obra da artista.
O conjunto de trabalhos aqui apresentados explora um ambiente de alta complexidade e carga simbólica, e traz à tona elementos da natureza humana em seu estado mais primordial: medo, fome, violência e ternura. Inerentes a todos, estas qualidades nos aproximam do mundo natural dos quais nos distanciamos ao longo das gerações. O cenário destas imagens é um ambiente selvagem, que abriga uma série de narrativas cujos agentes principais são animais da savana africana. Esses registros têm uma qualidade quase abstrata, e revelam agressividade e melancolia; são espelhos nos quais vemos refletidas nossas próprias características humanas.
Na sua superfície, os trabalhos parecem ser simplesmente constituídos de impressões fotográficas, normalmente caracterizadas por sua reprodutibilidade. Contudo, as interferências criadas pela artista – marcas precisas, realizadas diretamente nas impressões fotográficas – conferem aos trabalhos qualidade única. Como resultado, as obras transcendem a linguagem da fotografia, e adquirem qualidades da pintura. Alice Quaresma, cuja trajetória artística tem forte relação com a fotografia, tanto enquanto mídia como objeto de pesquisa acadêmica, faz uso de sua influência técnica de maneira admirável, e se utiliza de linguagens estéticas distintas para produzir, nesta série de trabalhos, imagens de intensa carga simbólica. As formas geométricas que se sobrepõem às imagens reveladas, bem como o próprio título da exposição, têm como referência as linhas orgânicas dos elementos fotografados por ela, e indicam o apreço da artista pelo movimento neoconcretista, dialogando com referências da história da arte no Brasil.
O contraste entre os elementos registrados através do processo fotográfico, todos eles de natureza orgânica, e as intervenções criadas diretamente pela artista na superfície dos trabalhos, ressaltam a ruptura entre o natural e o mecânico. As cores industriais utilizadas simplesmente não poderiam existir na natureza, e marcam visualmente a extrema ruptura entre estes dois mundos. Assim, a artista articula a relação entre o homem e o mundo natural, e o poder, muitas vezes destrutivo e antagônico, que a humanidade exerce sobre a natureza.
A violência presente na maioria dos trabalhos é contrastada pela ternura do conjunto “Família”, que retrata uma família de elefantes em cenas de ternura e carinho comoventes, características estas também da natureza humana. Seu formato e composição contrastam com o restante do grupo de trabalhos apresentados na mostra. Outro contraponto marcante é a dupla de trabalhos em grande escala compostos por impressões fotográficas coloridas: “Oceano” e “Vulcão”. Eles criam espaços focais no conjunto, e incrementam a composição estética da série.