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novembro 1, 2013
Inconsistências por Marcus Steinweg
Inconsistências
MARCUS STEINWEG
Marcellvs L. - Indiferença, Galeria Luisa Strina, São Paulo, SP - 07/11/2013 a 07/12/2013
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O trabalho de Marcellvs L. transita na linha fronteiriça entre presença e ausência, consistência e inconsistência de realidade. Ele da indícios do espaço indecisório entre 0 e 1 ou, a partir de um viés filosófico, entre o Nada e a realidade. O cálculo infinitesimal examina os intervalos (infinitesimais) infinitamente pequenos nas diversas áreas da matemática. Penso que o trabalho de Marcellvs faz o mesmo. Mas o faz com os recursos da arte. Podemos distinguir dois registros; o registro da finitude (que é a realidade constituída, o mundo dos números reais) e o registro da infinitude (que descreve a irrealidade do zero ou do Nada). Traduzido para as categorias de Lacan, seria essa a diferença entre realidade e real. Tudo se define a partir da diferenciação dessas duas ordens, das quais a primeira demarca consistência e a segunda, inconsistência.
Creio que Marcellvs, em suma, insista na indefinição entre os registros de consistência e inconsistência. A cada vez, os seus filmes apontam para a linha divisória fantasmagórica, que tanto une quanto separa esses registros. Daí o traço fantasmagórico de seu trabalho. Chão e abismo se fundem. Realidade e irrealidade se entrecruzam e, na medida em que se entrecruzam, geram uma zona intermediária fantasmagórica, que faz com que nossas certezas passem a oscilar. Portanto, falaria de uma ontologia implícita na obra de Marcellvs. A ontologia trabalha com o ser e com a presença. Ela o faz, diferenciando a esfera do Ser da esfera do Nada, por exemplo já em Parmênides. Ser e Nada, presença e ausência são categorias fundamentais da ontologia. Mas a filosofia do século XX, na sequência de Nietzsche, articulou-se como uma filosofia crítica da metafísica, questionando a ontologia. A desconstrução que Derrida faz da metafísica logocêntrica é a desconstrução da correlata ontologia da substância e do sujeito. Ela se dá através da junção das categorias da presença e da ausência. Presença sempre é, também, ausência. Só existe presença enquanto presença absenteísta. A categoria do desaparecimento torna-se central. Deleuze, por sua vez, fala do devir. Ambos, Derrida e Deleuze, reportam-se a Maurice Blanchot, cuja literatura (como alguns textos e filmes importantes de Marguerite Duras) abre um espaço fantasmagórico, que é o espaço indecisório entre o Ser e o Nada. É a zona fantasmagórica de uma instabilidade ontológica generalizada.
A realidade mostra-se como promessa de consistência que, no entanto, é quebrada. A realidade é uma ficção, uma narrativa. É uma espécie de tessitura com falhas, pelas quais sempre vemos transparecer a sua própria inconstância. Deleuze chamou essa tessitura de Plano de Imanência, Wittgenstein a chama de Forma de Vida ou Jogo de Linguagem. Lacan fala da Ordem Simbólica. Em todos os casos, trata-se de arquiteturas suspensas, estendidas como redes frágeis sobre o abismo da inconsistência, que Deleuze, no esteio de Nietzsche, chama de Caos. Os trabalhos de Marcellvs apontam para dentro desse caos. E o fazem com grande precisão.
Inconsistencies
MARCUS STEINWEG
Marcellvs L. - Indiferença, Galeria Luisa Strina, São Paulo, SP - 07/11/2013 til 07/12/2013
Marcellvs L.’s work moves on the line separating presence from absence, the consistency of reality from its inconsistency. It indicates the space of undecidability between 0 and 1 or, to put it in philosophical terms, between nothingness and reality. Infinitesimal calculus studies the infinitely small (infinitesimal) intervals in the various fields of mathematics. I think that Marcellvs’s work does the same; but with the means of art. We can distinguish between two registers, the register of finitude (which is constituted reality, the world of real numbers) and the register of infinitude (which describes the unreality of zero or of nothingness). Translated into Lacanian categories, this would be the difference of reality from the real. Everything is decided by the differentiation between these two orders, of which the first marks consistency, the second, inconsistency.
I believe that Marcellvs ultimately insists on the undecidability of the register of consistency from that of inconsistency. Time and again, his films point toward the spectral dividing line that ties these registers together as much as it separates them from each other. Hence the ghostly streak of his work. The ground and the groundlessness of the abyss coincide. Reality and unreality are crossed, and as they cross, they engender a phantomlike interstitial zone that lets our certainties falter. I would accordingly speak of the implicit ontology in Marcellvs’s work. Ontology occupies itself with being and with presence. It does so—already in Parmenides, for example—by distinguishing the sphere of being from the sphere of nothingness. Being and nothingness, presence and absence are fundamental categories of ontology. Now, twentieth-century philosophy, taking its cue from Nietzsche, articulated itself as a philosophical critique of metaphysics by calling ontology in question. Derrida’s deconstruction of logocentric metaphysics is a deconstruction of the ontology of substance and subject correlative to it. It proceeds by interlocking the category of presence with that of absence. Presence is always also absence. There is presence only as absentic presence. The category of disappearance becomes central. Deleuze, for his part, speaks of becoming. Both Derrida and Deleuze invoke Maurice Blanchot, whose literature (like several important texts and films by Marguerite Duras) opens up a spectral space that is the space of undecidability between being and nothingness. It is the phantomlike zone of a general ontological instability.
Reality proves to be a promise of consistency that is broken. Reality is a fiction, a narrative. It is a sort of fabric full of wholes, continually translucent to its own impermanence. Deleuze called this fabric an immanence level; in Wittgenstein, it is called form of life or language-game. Lacan speaks of the symbolic order. All are floating architectures strung like fragile nets over the abyss of inconsistency, which Deleuze, with Nietzsche, calls the chaos. Marcellvs’s works point into that chaos. They do so with great precision.
Marcus Steinweg