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agosto 5, 2013
Caro não é Carioca por Eugenio Valdés Figueroa
Caro não é Carioca
EUGENIO VALDÉS FIGUEROA
Antonio Caro - Caro não é Carioca, Casa Daros, Rio de Janeiro, RJ - 11/08/2013 a 06/10/2013
O título desta exposição, “Caro não é Carioca”, foi sugerido pelo próprio Antonio Caro. O artista gosta de brincar com as palavras, e não é a primeira vez que usa seu próprio sobrenome. Uma parte importante de sua obra esteve direcionada a fazer comentários sagazes através de palavras e símbolos, em que o lugar do artista “Caro”, por exemplo, pode multiplicar-se e confundir-se com o “custo da vida”, ao mesmo tempo em que jocosamente pisca o olho para si mesmo. Com uma dose de ironia, costuma nos deixar na incerteza sobre se “estar Caro” entrou na moda, ou será que nos convida a ir ao limite de tudo? Diz que muitos não se dão conta de que a sabedoria está na rua: “Tomei uma frase extremamente popular, como todo está muy caro (tudo está muito caro). Me interessa muito conseguir estar no cotidiano” . O cartaz “Todo está muy Caro” é um de seus trabalhos mais conhecidos, que vem sendo repetido desde 1978 em incontáveis variações, atualizações de ano e lugar, quase como uma confirmação de que as coisas – infelizmente – não mudaram tanto ao longo das últimas quatro décadas, e de que nos encontramos diante de um artista tão obstinado quanto consequente e íntegro com relação às ideias que defende.
Alguns anos antes, no Salão de Artistas Nacionais, em 1972 (Instituto Colombiano de Cultura, Bogotá), Caro apresentou AQUINOCABEELARTE (AQUINÃOCABEAARTE), uma obra de aproximadamente 11 metros de comprimento, explicitamente política em mais de um sentido. Com feitura e materiais precários, a obra se apresentava como crítica institucional manifestada ao Salão que, definitivamente, fazia parte de um circuito artístico dominado pela ortodoxia acadêmica e por um mercado complacente com o gosto burguês, apegado ao decorativismo e ao bom ofício da pintura, desenho e escultura. Nesse contexto, realmente, o tipo de arte que Caro propunha “não cabia”. Pois trazia não apenas um questionamento formal, mas sobretudo uma mudança de atitude em relação à finalidade da prática artística; do aspecto construtivo da obra de arte até suas funções e cenários de ação. E vice-versa, dentro dos cânones da arte que Caro questionava, não cabia a crua e complexa realidade sociopolítica de seu país. Debaixo de cada letra, lia-se o nome de estudantes e ativistas indígenas assassinados. Como informação adicional, aparecia a cidade e a data de morte em cada caso (entre 1969 e 1972) e, em algumas ocasiões, algum outro dado, como a idade, ou a data exata de um massacre ou operação de controle governamental. Já nesse momento, Caro e um reduzido grupo de jovens colegas – logo acolhidos pela galeria Belarca, em Bogotá – eram identificados no meio artístico como uma contracorrente artística dissidente e radical, associada às origens do conceitualismo na Colômbia.
Esta é a época, no Brasil, de “Inserções em circuitos ideológicos” (1970), de Cildo Meireles, que afirmava que a noção de público, uma noção ampla e generosa, havia sido substituída pela de consumidor – aquela pequena porção de público que detém o poder aquisitivo. Por isso já não era suficiente trabalhar com a metáfora da pólvora, havia que se trabalhar com a própria pólvora.
Em 1975, Caro se apropria do design das caixas de cigarro Marlboro, nas quais insere a palavra “Colombia”. Um ano depois, recorre ao logotipo da Coca-Cola para novamente escrever “Colombia”, desta vez com letras brancas sobre um suporte de lata esmaltada em vermelho brilhante. Referindo-se a “Colombia-Coca-Cola”, conclui que a arte é, simplesmente, uma questão de enfrentar ou não o branco, e que foi por essa obra que “transcendeu as fronteiras do mundinho da arte”. Como não conseguiu terminar seus estudos na universidade, a considera algo assim como “seu trabalho de conclusão de curso”. Foi com ela – afirma – que descobriu um procedimento que articulará todo seu trabalho posterior: “Eu fiz o brinquedo, cada um faz sua brincadeira, cada pessoa faz sua leitura. Não estou dizendo isso é assim, mas por favor, leia”.
Caro reconhece o indiscutível impacto que, entre os anos 1960 e 1970, o Pop europeu e norte-americano teve na arte colombiana. Nos diferentes cenários latino-americanos, muitos artistas se interessaram por ressignificar os ícones pop da sociedade de consumo para deixar descoberto seu reverso ideológico, ou para buscar seus heróis à margem da sociedade e da história oficial, ou para identificar e valorizar outros repertórios do vernáculo extraídos das idiossincrasias locais (incluindo não somente o urbano, mas também o suburbano e as tradições nativas, rurais e indígenas).
O Pop nos chegou em meio às ditaduras, e seus conteúdos se reformularam como uma forma de resistência e clandestinidade político-cultural, desafiando a censura. Mas a politização não foi exclusiva da assimilação crítica do pop na América Latina. Ou, pelo menos, foi além de um estilo em particular. Abarcou uma vontade iminente de trabalhar mais com as ideias do que com as formas, transformando o aspecto ideológico em um veículo eficaz para enfatizar a dimensão da comunicação da arte. Por isso, ainda que pareça paradoxal, para os latino-americanos resulta natural advertir sobre o DNA do conceitualismo até em algumas das principais obras “pop” desse período.
Do pop, procede a obsessão pelos processos da cultura da comunicação e pela produção, reprodução e circulação massiva. A repetição se tornou parte da estratégia conceitual de Caro, que diz que ao longo do tempo foi um “trabalhador de textos”. Mas há também em seu trabalho uma certa afinidade gráfica com o pop que, por exemplo, lhe permitiu transformar a imagem do pé de milho em um elemento emblemático de seu trabalho, que lhe dá uma marca pessoal, ao mesmo tempo que exalta uma tradição alimentar que remonta à época pré-hispânica e alcança toda a América Latina. Utilizando-se dos próprios ardis da publicidade, as obras de Caro se tornam escorregadias, infiltram-se calando fundo nos sistemas da arte, que não logram nem assimilá-la, nem manipulá-la comercialmente, e muito menos neutralizá-la ideologicamente. Não é o público que Caro tira de sua zona de conforto, mas o próprio sistema.
A obra de Caro pertence a essa vertente do conceitualismo latino-americano em que – de acordo com Luis Camnitzer – a arte, a política, a pedagogia e a poesia se sobrepõem, integram e polinizam. Camnitzer define bem a atitude do artista, a mobilidade de sua arte de fácil distribuição, seu humor afiado e sua capacidade para minar e transtornar as estruturas de poder em seu próprio terreno: “Caro seguramente se encaixa na corrente artística que desde os anos 1960 se categorizou como conceitualismo. Mas também se encaixa em algo mais vasto e culturalmente mais importante. Caro se manifesta numa forma muito particular de guerrilha visual”.
Em um texto memorável de 1970, Frederico Morais homenageia a Teoria da guerrilha artística de Decio Pignatari: “Quanto mais a arte se confunde com a vida e com o cotidiano, mais precários são os materiais e suportes, corroendo toda a ideia de obra […] O artista é hoje uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. […] Pois não sendo mais o autor de obras, mas alguém que propõe situações ou se apropria de objetos e eventos, não pode exercer continuamente seu controle. […] O artista é o que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa”.
Em uma conjunção do experimento conceitualista e da resistência política, Antonio Caro se apropriou da assinatura de Manuel Quintín Lame (1880-1967), líder indígena, advogado autodidata, que dedicou toda sua vida a lutar pelos direitos do povo Paéz e de outras comarcas dos Departamentos do Cauca, Huila, Tolima e Nariño, na Colômbia. Soube do líder quando, há quarenta anos, quase por acaso, leu seu livro Las enseñanzas del indio que se educó en la selva (Os ensinamentos do índio que se educou na floresta). Apesar de sua importância, Quintín Lame continua insuficientemente reconhecido, pertence à periferia da história ou, como diz Morais, à contra-história, ela mesma constituída de obras inacabadas, inconclusas. Desde 1972, toda vez que Caro pinta com urucum essa assinatura, reivindica a história do cacique e lhe rende homenagem; sendo assinaturas “efêmeras”, ao não se poder “possuir” – disse o artista – são portadoras de uma delicadeza ética muito significativa.
Desde 1994 até hoje, Antonio Caro vem desenvolvendo suas Oficinas de Criatividade Visual. Não são destinadas ao ensino das teorias da arte, muito menos a impor um critério sobre o que é ou o que não é arte. O artista apenas trata de estimular nos participantes sua criatividade. Eduardo Serrano assegura, no texto incluído neste volume, que Caro tem a firme opinião de que qualquer indivíduo é depositário de uma força criativa e de uma vontade de expressão, e o propósito dessas oficinas é ativar essa força e vontade. Numa entrevista posterior com o crítico Víctor Rodríguez, Caro argumentou: “Eu acho que, nestes tempos, se o artista atua, é suficiente; se atua como ser social (…). Então digo: não, não mais produção artística, não mais obras de arte, façamos, atuemos, atuemos na sociedade. Eu me justifico como ser social por meio de minha oficinas, em que tento dizer às pessoas: você pode ser criativo”.
Eugenio Valdés Figueroa
Casa Daros, Rio de Janeiro, 2013