|
maio 9, 2013
Clima tempestuoso: O sublime e as pinturas de Oscar Oiwa por Marilyn Zeitlin
Clima tempestuoso: O sublime e as pinturas de Oscar Oiwa
MARILYN ZEITLIN
Oscar Oiwa - Clima tempestuoso, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 15/05/2013 a 15/06/2013
A natureza tornou-se devastadora. O aquecimento global vem causando ondas de frio e calor nunca antes registradas, tsunamis, furacões, tornados, nevascas, queimadas, enchentes e secas que resultam em altos custos humanos, vidas perdidas, destruição do meio ambiente e ansiedade exacerbada. Realmente construímos um muro para conter a força das marés que ameaçam invadir Manhattan? Será que isso é possível em termos técnicos e financeiros? E todos os demais lugares que estão sitiados por causa de eventos climáticos cujas proporções são gigantescas? Lidar com o presente meteorológico e com o caos progressivamente violento e frequente que ele traz consigo é um novo desafio que se apresenta. E surgem também novas realidades com as quais os artistas têm de lidar. As imagens dessas catástrofes não podem mais ser vistas como metáforas para estados de espírito sociais ou pessoais, tampouco ser meros mecanismos que sirvam de base para enredos. The Tempest [A Tempestade] é agora de verdade, e respinga sobre todos nós.
Oscar Oiwa retrata desastres – naturais ou causados pelo homem – há mais de uma década. Representações de violentos episódios climáticos correspondem a aproximadamente metade de sua produção; as demais obras retratam equívocos políticos e sociais e estados de calamidade. E a ele nunca faltaram casos ou inspiração. Mas ele não é engajado na mera cobertura. Seu trabalho é mais que simples protesto. Ele envolve o espectador na exploração desses eventos por meio da criação de obras visualmente poderosas e belas: por meio da evocação do sublime.
E, gostemos ou não do ressurgimento do sublime, é melhor nos acostumarmos a ele. É pouco provável que os acontecimentos com os quais Oiwa e outros artistas lidam diminuam; portanto, é melhor dar-lhes um nome e transformá-los em arte do que apenas se lamentar pelo que aconteceu e pela alta probabilidade de se repetir no futuro.
Foi no século XVII que o sublime, em sua forma moderna, apareceu pela primeira vez, em um texto grego traduzido por um romano chamado Longinus[1]. Porém, as características do sublime mais conhecidas entre os pensadores ocidentais foram sistematizadas quase um século mais tarde, na obra de Edmund Burke. Em Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757), Burke identifica as características do sublime como sendo nossa reação a aspectos da natureza. Essas noções do sublime foram amplamente celebradas por artistas e poetas do romantismo. Uma característica central do sublime é que ele resulta no domínio da razão pela emoção. Acontecimentos ou visões provocam espanto ou medo em quem os vê. Esses sentimentos vêm à tona por causarem “assombro […] aquele estado da alma em que todo e qualquer movimento fica suspenso, com um certo grau de terror […]”. O medo “rouba da mente todas as suas forças […] e seu raciocínio”[2]. Encontra-se o sublime em condições nas quais o controle humano é desafiado, e a escala humana, ultrapassada. Diz-se que o sublime é uma condição que desafia totalmente a representação.
Burke se refere a um sublime que existe na natureza. Para nós, que vivemos no século XXI, a natureza está sendo comprimida para fora da nossa vida. Às vezes, penso nela como algo que vemos quando estamos a caminho do aeroporto. No entanto, em textos escritos mais recentemente, principalmente por Immanuel Kant, o sublime é abstraído da natureza para ser descrito como algo que ocorre na mente “onde a razão encontra o seu limite”[3] e que pode ser provocado tanto pela arte quanto pela natureza. Uma das manifestações do sublime é o estranho, que sugere que algumas imagens ou experiências sejam familiares e misteriosas, ao mesmo tempo. Essa condição liga o mundo tangível com aquele que desafia a razão, e nos leva para um lugar onde ficamos perplexos ou assombrados pelo que vai além da compreensão racional.
Recentemente, assisti a uma montagem de Parsifal, de Richard Wagner, realizada pela Metropolitan Opera de Nova York[4]. Um dos desafios de produzir essa última ópera de Wagner é que o compositor evoca as emoções do sublime na música e confere forte espiritualidade e poder aos personagens, mas dá poucas indicações sobre como deve ser feita a encenação. É um caso clássico de irrepresentabilidade. A solução encontrada pela Metropolitan Opera foi criar cenário e figurino minimalistas para obter uma ambientação visual abstrata. No último ato, o que se vê é um palco que lembra o mundo devastado e as figuras desesperadas do romance The Road [A Estrada], de Cormac McCarthy[5]: o término da civilização. Porém, enquanto Parsifal retorna para acabar com a maldição que assola o mundo e salvar a Terra e toda a humanidade com sua pureza, Oiwa não tem muito a oferecer em termos de salvação explícita. Em vez disso, em suas obras que retratam desastres, ele nos mostra o belo, o que eleva a experiência do trabalho a uma espécie de transcendência.
O abstrato funciona bem como meio de expressão do sublime, o que Oiwa explora mesmo em seus trabalhos figurativos. Talvez, entre as pinturas que compõem esta exposição, a expressão mais vívida do sublime seja Swirl (2012). A imagem de um tornado encontra-se com uma estrutura em forma de cúpula, cujo contorno forma um anel de janelas ou luzes. Enxergar essa cúpula como o Superdome, aquele abrigo falho para os pobres durante a passagem do furacão Katrina, em Nova Orleans, é apenas uma das leituras que se pode fazer dessa obra. Seria a Cúpula da Basílica de Santa Sofia? Seria uma nave espacial? Raios de luz partem do anel e iluminam o tornado. Estamos em um lugar coberto ou ao ar livre? A imagem é assustadora, em parte, por sua ambiguidade. A obra tem proporções sublimes; e a composição, simétrica com duas massas complementares concêntricas, amplia a energia descontrolada com a tensão entre a expansão e a compressão. A pintura é como uma iminente explosão. A ausência de especificidade – ou sua qualidade abstrata – torna-a sutilmente capaz de evocar o que quer que, no fundo, nos dê medo.
Em Earthscape (2012), Oiwa expressa seu espanto ao ter uma visão aérea da Terra. Campos estão cuidadosamente organizados em retângulos e círculos. As sombras criam um ritmo de luz nas margens. A imagem é uma celebração da natureza moldada pela agricultura. A presença humana está implícita, e o mundo parece estar bem. A obra que a acompanha, The Accident (2012), retrata uma paisagem semelhante, mas Oiwa transforma essa versão em uma situação de transtorno e calamidade. Primeiramente, as colinas ondulam; as linhas de contorno enfatizam o padrão concêntrico da energia. Como um mar revolto, as colinas parecem estar batendo contra o penhasco localizado na extremidade esquerda do quadro, onde um caminhão não conseguiu terminar de fazer a curva na estrada e está pendurado, prestes a despencar. Oiwa, conhecedor dos mestres da impressão xilográfica de Edo, faz um tributo a Ando Hiroshige (1797-1858), ecoando as ondas do mestre do ukiyo-e e sua composição, em que uma diagonal divide o espaço do mar, mais baixo e distante, ou o vilarejo longínquo, e um caminho íngreme no primeiro plano[6]. Aqui, Oiwa não resiste e se arrisca: a proporção sublime e o espanto pela visão aérea da Terra é agora o cenário de uma tragédia; além disso, ele amplia o significado ao nos lembrar dos perigos cotidianos que podem estar nos esperando na próxima esquina. A obra dramatiza a violação do previsível e apresenta uma janela para o lado obscuro da imaginação.
Em Rescue Boat (2013), a escuridão de Swirl e as ondulações de The Accident reaparecem como contexto para um drama. Ondas gigantescas ameaçam engolir um grande navio no qual um bote salva-vidas está pendurado. A luz emitida pelos faróis do barco de resgate, que parece minúsculo em meio às ondas e comparado ao navio fantasma, penetra a escuridão. Os feixes de luz, se observados da direita para a esquerda, formam as garras, ou a boca, de um monstro marinho. A pintura é repleta de imagens assustadoras, de uma energia selvagem, fora de controle e inexplicável. A única ordem é transmitida pelo barco de resgate. Seu percurso deixa como rastro um enorme círculo sobre as ondas. O barco de resgate é um salvador vindo de outro reino que se ergue sobre o caos do mar na tentativa de impedir o desastre com sua luz penetrante, sobrenatural.
Em Ghosts (2008), Oiwa cria um místico pântano de entulho que observamos como se fosse um aquário. Sobre a água, fantasmas cujas silhuetas têm o formato da China e da Rússia. Ambos encaram o formato submerso dos Estados Unidos. À direita está um ninho no qual meia dúzia de pequenos fantasmas amontoa-se. Provavelmente, são parentes de personagens da Disney ou um coro grego, observando o confronto entre os poderosos. As figuras de cor negra lembram os fantasmas famintos (e-guei) da mitologia budista. Esses seres não são totalmente humanos. Eles habitam um limbo, condenados a viver com um apetite insaciável. É fácil perceber o paralelo entre a insaciabilidade e a sede por poder geopolítico, uma situação fatal para os países que se veem no meio do fogo cruzado.
Cerca de metade da produção de Oiwa explora o elemento sublime na paisagem. A outra metade traz um olhar mais explícito sobre a loucura humana, no qual uma crítica está implícita, mas que também eleva o que parece ser uma narrativa oculta na realidade cotidiana e, frequentemente, urbana. Servindo de ponte entre os dois grupos está Five Nests (2012). O sublime na natureza surge na forma de uma selva densa, impenetrável. Oiwa pinta uma selva digna de Henri Rousseau, com palmeiras, samambaias gigantes e bromélias. Formas semelhantes a fitas se entrelaçam com troncos de árvores, costurando e unindo a composição. Ele anima a superfície com pontos dourados que personificam a luz brilhante, mas também parecem preencher a atmosfera com representações de energia. Os pontos são parentes dos kami que são, de acordo com o xintoísmo, espíritos que não são exatamente deuses, mas atores espirituais[7]. Agarradas às árvores ou inseridas nos troncos, estão conchas habitadas por humanos em miniatura. Elas são recortadas de modo a mostrar cômodos decorados com bom gosto, com mobília típica da modernidade. Porém, não há ninguém em casa. Talvez se trate de uma visão pós-apocalíptica mais benevolente, suave, mais atraente que as paisagens áridas; mas, considerando o tamanho da obra (555 centímetros de largura) e a incongruência dessas habitações minúsculas no meio da selva, elas evocam o que Sigmund Freud chama de “estranhamento:” “[…] tudo o que é terrível, […] tudo o que causa medo e terror”[8]. Essa obra impregna a mente com sutileza e, portanto, penetra mais profundamente do que as mais explícitas Rescue Boat ou The Accident com suas narrativas de desastre. Nessa selva, Oiwa nos deixa quebrando a cabeça a respeito do que pode ter tirado os humanos do lar, e cabe a nós a tarefa de completar a narrativa.
Oiwa viveu boa parte da vida em movimentados ambientes urbanos: São Paulo, Tóquio e, agora, Nova York. Ele traz para sua visão e imaginação do mundo urbano sua familiaridade com histórias de fantasmas, filmes e quadrinhos de terror, e as notícias cotidianas. Observa as imagens urbanas de cima, como se olhasse a rua do alto de um prédio. Ele costuma enfatizar o que é ignorado. Em Yellow Elephant (2013), o ator principal de Oiwa é uma escavadeira gigante. Ela remove entulho do chão de um canteiro de obras em um rio. Atrás, há uma ponte em reforma. A água reflete as nuvens, a única ligação com o mundo natural. A escavadeira é o elefante. Sabemos que se trata de um elefante de circo porque, ao lado, está um tamborete redondo em cujo topo há uma estrela desenhada. A aproximação da escavadeira com um animal flerta novamente com o misterioso, mas, nesse caso, isso é feito de forma ambígua e com humor. Trata-se de algo estritamente fantasioso? A semelhança seria uma idiossincrasia associativa? Ou seria o elefante igual aos muitos trabalhadores anônimos, apenas uma máquina escravizada para beneficiar os outros?
Oiwa estava em Nova York quando o movimento Occupy Wall Street buscava conscientizar as pessoas sobre a situação dos pobres e desprovidos. Em Occupy Everywhere (2011), Oiwa apresenta uma estrutura semelhante ao canteiro de obras de Yellow Elephant. Ele apresenta habitações improvisadas sob um viaduto por onde passa o metrô e ao lado do rio que conhecemos de Yellow Elephant. Nessa obra há duas residências. Ao fundo, está um local simples: a residência dos 99%. À frente, iluminado por uma luz resplandecente vinda diretamente de Guernica (1937), de Pablo Picasso, há um lugar parecido, mas esse é um elegante loft decorado que pertence ao 1%. Oiwa coloca os muito ricos e os desprovidos no mesmo lugar: ambos estão vivendo à margem, sob a ponte. O espaço do 1% é decorado com a mobília tipicamente moderna de Five Nests, a referência preferida de Oiwa à modernidade em geral, com todos os seus elevados ideais e consequências não intencionais. As dimensões e proporções da obra de Oiwa são parecidas com as de Guernica. A obra de Picasso mede 350 por 780 centímetros, a de Oiwa, 227 por 444 centímetros. Outra referência artística é Keith Haring, que pintava nas linhas de metrô e nas ruas de Nova York. Aqui, a obra de Haring Crack is Wack (1986; restaurada em 2007) é, ao mesmo tempo, uma arte de guerrilha e uma peça de colecionador. Vemos também a Fonte (1917), de Marcel Duchamp, de volta à sua origem mais baixa, à sua condição de urinol, jogada em um canto feito lixo. Brillo Box (1964), de Andy Warhol, também volta às origens. Agora é apenas papelão, e seu valor artístico não é mais relevante. Oiwa está criticando a modernidade, questionando o sistema de valores de seu próprio mundo – o mercado da arte. Ele nos diz que o movimento Occupy nunca ficará sem objetivos, que o compromisso com ideais vai muito além de Wall Street e engloba praticamente tudo. Oiwa nos mostra que somos todos afetados pela disparidade na distribuição da renda contra a qual o movimento Occupy se rebela. Mas, acima de tudo, ele mostra a perseverança e a luta pela sobrevivência e os que fazem isso em ambientes parecidos com o que ele retrata, seja em Nova York ou nas favelas do Brasil. É o frisson do terror, do sublime que se torna palatável pela sagacidade do artista e pela própria beleza do quadro.
Em Big Circus (2011), Oiwa transporta o elefante para um lugar totalmente fantasioso. Um elefante de aparência cansada divide a cena com um burro. A dupla corresponde a emblemas dos bastiões da política. O touro é de Wall Street, é o símbolo de um mercado financeiro agressivo, aquele que em 2008 trapaceou e pôs em risco toda a economia dos EUA. Uma águia, de aparência um pouco fatigada, sugere a liberdade. O elefante e o touro estão sem pele, e suas vísceras mecânicas, expostas. Todas essas criaturas – ou máquinas – encenam um drama maçante no mapa dos Estados Unidos. O plano de fundo é composto por formas construídas que se desintegram. Toda a cena ocorre no Picadeiro, o local principal de um circo. Oiwa expressa a repulsa que muitos americanos e outras pessoas sentiram e sentem pelo circo em que as principais instituições parecem ter se transformado. Nem mesmo seus pontos conseguem trazer muito otimismo. Trata-se de uma obra sagaz e terrível.
Oiwa não desvia o olhar do mundo ao seu redor; ele nos faz ter sentimentos diferentes e pensar de maneira distinta sobre esse mundo. Ele usa sua consciência da imensidão do mundo, sua sagacidade, sua imaginação, sua tremenda habilidade artística para transformar o terrível em algo sobre o qual conseguimos refletir.
Marilyn Zeitlin, 2013
NOTAS
[1] Morley, Simon. “Introduction/The Modern Sublime”. In: Morley, Simon (ed.). The Sublime. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2010, p. 14.
[2] Morley, op. cit., p. 15.
[3] Id., ibid., citando Immanuel Kant, The Critique of Judgement, 1790.
[4] Metropolitan Opera, 2013, Jonas Kaufmann, Parsifal; produção: François Girard; regente: Daniele Gatti.
[5] McCarthy, Cormac. The Road. Nova York: Alfred A. Knopf, 2006.
[6] Hiroshige utiliza essa fórmula diversas vezes na série de gravuras As cinquenta e três estações da Tokaido.
[7] Um dado interessante: “Oiwa” é o nome do personagem principal de Yotsuya Kaidan, um conto japonês sobre traição, assassinato e vingança fantasmagórica. Foi escrito originalmente para ser uma peça do teatro kabuki, em 1825, e passou a fazer parte da cultura. Ver en.wikipedia.org/wiki/Yotsuya_Kaidan (em inglês).
[8] Publicado pela primeira vez em 1919, citado em “Mike Kelley in Conversation with Thomas McEvilley”, 1992. In: Morley, op. cit., p. 198.