|
maio 8, 2013
Beatriz Carneiro - Cortes por Marcelo Campos
Cortes
MARCELO CAMPOS
As obras de Beatriz Carneiro, selecionadas para a exposição Cortes na galeria Mercedes Viegas, tratam de experimentações poéticas diante da fisicalidade dos objetos. Em imagens fotográficas, esculturas e gravuras, a artista ativa o impacto diante de cores, texturas, impressões, evidenciando o corpo e seus fluidos, o sangue, a contrição da matéria, a calcinação. Diante das formas, nos familiarizamos. São pães, bolos, cadeiras, tapetes. O cotidiano. Domesticidades. Porém, os cortes tornam as imagens violentas. São sacrifícios, destruições, estados de alteração da matéria que a arte e a vida controlam, imputam, elaboraram.
Ao mesmo tempo, vemos tentativas de domesticação do que se aproxima de atitudes não-civilizadas, fatos aos quais poderíamos conferir o status de sublime, selvagem, alteridade, já que lidam com uma natureza em excesso. Mas a arte confere à violência uma porção de aprisionamento. Tal qual a escrita, deixa-se de se estar diretamente ligado à realidade para tornar-se coisa, como nos explica Jack Goody. E a possibilidade de “cumulação” faz da escrita fixada num papel um “tipo de exame crítico”, de distanciamento. Assim, vemos nas imagens vestigiais, frutos de processos mais ou menos dramáticos, uma atitude crítica, uma hospitalidade diante da imediaticidade, a mão estendida. Imagens de intensa dramaticidade precisam ganhar escala na fotografia. E o que observamos são os restos de processo, os vestígios de ações ritualizadas.
Na materialidade, Beatriz Carneiro investe no que geralmente não se domestica. Na série Gateau, a artista se utiliza de piche, cobertura de asfalto para condensar pequenos bolos. Há uma compreensão subversiva em encher a casa, o lar, de elementos que são, nesta esfera, venenos. Sim, estamos lidando com a imagem cool, algo blasé, mas que enche a casa de epílogos da matéria, em outra acepção, de morte. As forças foram condensadas em ações, o fogo foi controlado para que a queima atingisse o ponto certo entre o pão, a argila e o carvão, como na série de pães calcinados.
No trabalho Superfície de pele o que vemos em fotografia é o momento subseqüente, um instante ulterior ao acontecido, ao “está feito”. A ação advêm de um processo ritual, aquele onde estados preliminares, liminares e pós-liminares dotam de sentidos o gesto, o sacrifício, a coleta do sangue. Mas a artista utiliza de certa ironia ao colocar uma poltrona e um copo de whisky diante da superfície de pele encharcada de sangue. Suspende-se, novamente, a imediaticidade, ainda que a arte faça o processo recomeçar. A pele, o suporte, a aconchegante sensação do tapete redimem os pés do cansaço, do crime diário. E o delito, agora, é olhar.
Imagens de violência, dirá Susan Sontag, foram banalizadas. Diante da dor do outro, a fotografia cria um misto de admiração (pela imagem, pela beleza) e revolta. Mas um artista pode lidar com o intolerável que se funda ao ofertar o próprio sofrimento para que o mesmo seja equiparado ao do outro. Isto é intolerável, dirá Sontag. Mas, continua a autora, “mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno”.
O que faz Beatriz Carneiro diante de tantas complexidades é nos fornecer Cortes, ou seja, seccionar o momento ritual, apresentar peles, sangue, carvão, como lâminas, impressões digitais, final películas. Assim, elaboram-se imagens quase abstratas. Sem dúvida abstraídas de uma narrativa sem início ou fim. E a artista exerce sua parcela de eterna sedução. Um corte é, antes de tudo, a possibilidade de critica, uma preparação para começar a contar uma história, ainda que a completude esteja inevitavelmente perdida.
Marcelo Campos