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março 5, 2013
A cegueira e a névoa por Felipe Scovino
A cegueira e a névoa
FELIPE SCOVINO
Jimson Vilela - Falsa Aparência, Galeria Progetti, Rio de Janeiro, RJ - 12/03/2013 a 27/04/2013
Em um mundo regido pelo excesso, a obra de Jimson Vilela corre contra este fato. Mesmo quando ela investe em uma espécie de inchaço (como em Névoa, 2012-13), o artista recorre a um repertório que se caracteriza pela suavidade e delicadeza. Dois fios parecem tecer a exposição simultaneamente: um processo de desaparição ou invisibilidade da imagem e outro de uma cegueira que se anuncia lentamente. Voltarei a esses dois pontos mais a frente. Ademais, a exposição é dividida em duas partes que se completam integralmente. Se no andar superior, Névoa preenche todos os espaços da sala de uma forma arrebatadora fazendo com que o espectador se sinta imerso pela incompreensão, em um estado de deriva, no primeiro andar os intervalos entre as obras são mais generosos. Há uma suavidade pairando naquela atmosfera, enquanto Névoa redimensiona o espaço da galeria e sua potência vibrátil faz com que a sala ganhe forma, volume, dobras, ao mesmo tempo em que condiciona uma formação incessante de novas paisagens.
Título Oculto (Homenagem a Lygia Clark) (2012-13) é um livro sem palavras. Suas páginas em branco, sua forma e estrutura são convertidas na fita de Moebius, uma imagem muito singular para a arte brasileira na sua passagem do moderno ao contemporâneo. Essa história começa em Max Bill (Unidade Tripartida na I Bienal de São Paulo), segue como um norte para os concretistas e neoconcretistas e chega a uma espécie de maturidade fenomenológica (entendam essa expressão como uma licença poética) na obra de Oiticica (especialmente os Parangolés) mas fundamentalmente em Lygia Clark. A estrutura sem avesso, o dentro é o fora e uma forma contínua e flexível (no caso de Clark e dessa obra de Jimson) que a todo momento revela uma forma simultaneamente aberta e fechada. Sendo um livro, Título Oculto é uma ficção, porque sua vitalidade está no acontecimento, na criação de fábulas, no perpétuo desejo de descobrir ou revelar o inesperado ou como o artista aqui intitula: o oculto. A falta da palavra (mais um exemplo ou elemento desse estado alegórico da cegueira que Jimson opera e que é tão caro a Lygia Clark se pensarmos em obras como Máscara Abismo, Máscaras Sensoriais, Canibalismo ou O Eu e o Tu: série roupa-corpo-roupa nas quais a visão é impedida por uma faixa de tecido ou um capacete) não impede a fabricação da ficção. Situação similar ocorre em Introspecção (2012-13). Uma obra que figura entre a falência (sugerida no acúmulo de restos e vazios, um depositário de supostos “nadas”) e a travessura ou um certo dado jocoso, acentuado pelas distintas alturas em que os livros estão dispostos. O que está ausente nessas duas obras está presente em Vínculo (2012-13). Nele, as palavras não explicam nem constroem um sentido literal. Enquanto forma, são fitas que criam estruturas livres e abertas, remetem a um entrelaçamento como se vários rios estivessem se encontrando. A referência a Guimarães Rosa se revela como uma celebração ao mesmo tempo em que Jimson exibe um estado latente da “função” da arte: a sua condição como enigma. Não apenas as distintas condições de leitura da “verdade” que aquela obra (supostamente) possui mas também uma impossibilidade de seguir adiante e de compreender o que está diante de nós. Aqui está o ponto nodal. A arte coloca-se como um meio de se lidar com as diferenças e substancialmente conviver e compreender o outro em um mundo repleto de erros, desacertos e incongruências. Essa imagem simbólica se faz presente nessas obras. É o que se coloca também em Falsa aparência (2012-13). A foto de parte de uma página de um livro sobre a história de Goiânia nos revela esse desvio ou incongruência. O corte abrupto sobre papel torna aparente o desenho de montanhas. Em uma cidade árida, seca e planejada surge a natureza, quase como um oásis ou a revelação de um elemento arqueológico.
O mencionado dado vibrátil de Névoa está diretamente ligado a sua estrutura (grid) e como o artista dialoga com referências tão distintas que variam da escrita ao minimalismo. O grid cubista no início do século XX, seguida pelas vanguardas construtivas permitiu uma relação espacial inteiramente nova na pintura com a conquista da planaridade. “A convicção de que as pessoas podem expandir os espaços infinitamente – através de um traçado em grade – é o primeiro passo, geograficamente, de neutralizar o valor de qualquer espaço específico.”(1) Por outro lado, Névoa a uma certa distância, quando já não conseguimos mais identificar as palavras contidas na obra, revela outras condições: sua estrutura que opera entre cheios e vazios, preenchimentos e desaparições (mais um estado para a aparição da ideia de cegueira), marcas do tempo e territórios. O grid também se anuncia como fronteira: a borda amarronzada, resultante da passagem do tempo, cria uma espécie de moldura natural para aquela pintura/livro. Através de gestos mínimos e de uma economia precisa, Jimson possibilita que o tempo ganhe forma e se estabeleça como visibilidade e território. Aqui se anuncia outro dado constante na obra de Jimson: como o espectador se transforma em leitor e vice-versa, e portanto como esses dois estados são inseparáveis. Se a suavidade foi um tema bastante caro no térreo, aqui ela se coloca no modo como o artista organizou a disposição dos módulos. As páginas foram alocadas em grupos de acordo com a sua tonalidade ou aparição desse elemento simbolizado como névoa. Nesta situação de um denso nevoeiro surge um embate entre a verdade disposta no significado da palavra, que por sua vez passa a lidar com a imagem do apagamento, versus a sua própria permanência (esse pensamento pode ser deslocado para a própria função ou continuidade do livro enquanto suporte de papel na contemporaneidade visto as novas tecnologias que cada vez mais se direcionam para a expansão do livro virtual). Para além do lugar de dúvida que essa obra se coloca (seria um livro, pintura ou instalação?), Névoa também revela o gesto ou a “mão” do autor. Ainda estabelecendo pontos de contato com o minimalismo, se nas obras de Sol LeWitt e Agnes Martin uma investigação mais atenta revela as linhas tortas daqueles grids, em Jimson as linhas sequenciais formadas pelas páginas do dicionário mostram-se irregulares e repletas de subjetividade e poesia.
1 SENNET, Richard. The Conscience of the Eye. Londres: Faber and Faber, 1990
Biografia do artista:
Jimson Vilela (Rio de Janeiro, 1987). Vive e trabalha entre SP e RJ.
Bacharel em Artes Visuais (IART/UERJ, 2010). Desde 2008 desenvolve trabalhos em diversas mídias tendo como principal foco de interesse as relações entre o texto e o corpo a partir do cruzamento entre os conceitos de realidade e ficção. Entre suas principais exposições destacam-se as individuais Cambio (Nuevo Museo Energía Arte Contemporáneo, 2012) e Laboratório (Fundação Cultural de Criciúma, 2011), as coletivas Convite à viagem (Rumos Itaú Cultural, 2012), 7ª Bienal Internacional da Bolívia (SIART, 2011) e a 5ª Bienal Internacional do VentoSul (Cinemateca de Curitiba, 2009). Possui trabalhos em coleções públicas como MAC Niterói, MoMA NY e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 2012, participou de residência junto ao Museu de Arte Nuevo Energía de Arte Contemporáneo, Buenos Aires - Argentina. No Brasil é premiado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais 2012.