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fevereiro 13, 2013
Tempo, sega e desejo – Claudia Bakker por Guilherme Bueno
Tempo, sega e desejo – Claudia Bakker
GUILHERME BUENO
O objeto – maçãs. Uma escolha intuída ou propositada? Talvez, as duas motivações tenham se dado juntas. Pois não se trata de algo qualquer; ele, apesar de deflagrado por uma apropriação é o anti ready-made. Nele está a metáfora do limite entre desejo e risco. Incorpora também, por uma relação indireta, a consciência dolorosa da fugacidade (de Adão e Eva fadados à mortalidade até as naturezas-mortas de Cézanne). Um fruto cuja seiva, visto o simbolismo que carrega consigo, seria a cultura – em outras palavras, um objeto que deixou de pertencer apenas à natureza. O fato é que para Claudia Bakker, a maçã repertoria uma memória da arte, a frágil porém incisiva delicadeza da existência, a marca corpórea do ser volitivo, a quase invisível (porém supravisível) passagem entre presença corpórea x ausência fantasmagórica, intrínseca a toda obra de arte.
É também uma poética que se faz por coletas. Assim ocorre com seu compêndio de frases, coleção de pensamentos das mais diferentes origens que ela reúne, como se ali reescrevesse o seu livro, a sua prosa do mundo. A ideia mesma de colecionar traduz outra instância pela qual a artista defronta o desafio da temporalidade. Afinal, o gesto do “corte” de uma frase ou de uma fruta de seu livro ou de seu galho equilibra-se entre o destruir e o prolongar-se mediante a transformação (assim também fizeram os museus outrora com os tesouros que buscavam alhures). Haveria nessa precisa indefinição temporal um sentimento heraclitiano diante do mundo? Em seus trabalhos o tempo ganha uma maleabilidade decorrente da releitura de um mesmo problema/objeto com diferentes linguagens. O objeto (a maçã) por vezes é presencial, expõe sua mudança de estado à nossa frente. Em outros casos, tangencia a perenidade em filmes que o conservam a fundo perdido por meio da imagem. Inverte-se a suposta correspondência entre desejo e presença, pois se a imagem projetada (como, aliás, é característico da própria natureza das imagens) evoca um desejo que não se pode consumar, uma vez que o objeto se constata distante – temos uma prova disso sempre que pegamos a foto de alguém que nos faz falta – o objeto presente, com seu apodrecimento, pode sugerir uma repulsão, naquilo em que nos assustaria com a constatação de efemeridade que nos cala e espelha. Sentimo-nos no fio da linha que separa e urde simultaneamente o ciclo da vida e o horror vacui do desaparecimento, um tributário ao outro (e, digno de nota, é observar o quanto, por outro lado, a artista materializa o vazio nos espaços que ocupa). Nisso consiste o gesto conscientemente paradoxal da colheita, das coletas de Claudia Bakker, ao costurarem os liames de uma poesia de renascimento e de melancolia.
Em seu trabalho se dá a conjugação de objetos simples com os meandros do sensível que cavam no espaço expositivo, com seus textos, instalações e filmes uma seara de sentidos ora complexos, ora dispersos, ora infinitos. Eles podem ser vistos como um processo de deflagração contínua, em que um trabalho testa e reinterpreta o sentido do outro, como se existissem apenas sob condição de revolver a própria memória. Isso permite com que uma fotografia se transforme em um filme e a seguir em uma videoinstalação. Que um conjunto de frases vire texto, um livro no espaço (o que, inclusive, agrega um novo sentido àquilo ao qual nos referimos antes como sua prosa do mundo, sua capacidade de instaurar sentido por coisas à primeira vista comuns). Abre-se desse modo uma temporalidade cuja poética da artista é único fluxo capaz de organizá-la; só é admissível e autêntico um sistema sensível, que incute em si mesmo o seu enigmático ciclo em espiral... Não é à toa, portanto, que algo tão corriqueiro e banal como uma maçã consiga cristalizar referências tão amplas.
Nesse sentido, a mostra aqui apresentada no Centro Cultural Banco do Nordeste funciona como uma “antiantologia”. Isso porque assim como ela apresenta e reapresenta obras exemplares da trajetória da artista, não o faz como mera repetição isolada e sequencial de trabalhos novos e antigos, mas, uma vez que eles passam por releituras, reinterpretações, podemos falar de uma mostra que é antiantológica por se basear no sentido de reencenação, isto é, o trabalho que, tal como o tempo que continuamente discute, precisa ter consciência de suas passagens, paisagens, sobreposições e reinvenções. Um tempo para além do tempo. E que nunca se perde.
Guilherme Bueno