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janeiro 31, 2013
Subversão da Arquitetura / Pontuação da Arquitetura: Passagens por Marília Panitz
Subversão da Arquitetura / Pontuação da Arquitetura: Passagens
MARÍLIA PANITZ
A intenção plástica que semelhante escolha subentende é precisamente o que distingue a arquitetura da simples construção." Lucio Costa 1
Talvez a grande questão que se possa levantar em relação à arquitetura dentro do universo da cultura e especialmente da estética, seja o fato de que ela ocupa a região fronteiriça entre a funcionalidade e o oferecimento à fruição não funcional com uma radicalidade improvável a qualquer outro dos campos limítrofes, como o design, a fotografia, a escrita jornalística, entre outros. Esta é, possivelmente, uma das áreas mais ricas para a discussão que se apresenta neste campo ampliado da produção artística. 5
Geraldo Zamproni produz suas obras nesse intervalo. Para além da ideia de colocação da obra dentro do espaço construído ou em relação ao mesmo, o artista fustiga a estrutura arquitetônica com suas enormes (mas, ás vezes, mínimas 6)formas que, ao mesmo tempo, ressaltam e desconstroem o rigor das formas. Propõem paradoxos para o olhar.
Seu trabalho aproxima-se à linha de produção de artistas que, a partir do século 20, passam a pensar a intervenção no espaço urbano e, em especial , nas suas edificações como comentário /pontuação daquilo que o habitante da cidade passa a naturalizar, ver como algo que sempre esteve ali e que é assim porque tem que ser – marca da paisagem urbana. Se avizinha de certas obras de Gordon Matta Clark, nos faz pensar nos Projetos Arte|Cidade. E, sem dúvida, nos remete àquele Benjamin que requisitava o olhar do visitante para ativar certos equipamentos urbanos invisíveis a seus habitantes 7.
Brasília, 2011: Premiado pelo Edital da Funarte, Geraldo instala suas enormes almofadas vermelhas, sua "Estruturas Voláteis" 8 sob a marquise do Espaço Cultural da Funarte, no Eixo Monumental. A paisagem se transforma (e há que se observar o fato de que esta paisagem urbana específica, em sua monumentalidade, "engole" quase tudo que se instala para dialogar com as edificações de Oscar Niemeyer). Há uma propriedade nas dimensões que é rara nas propostas de intervenção nesse espaço. Por outro lado, as formas vermelhas tomam conta do espaço inferior da marquise, do espaço de passagem (no sentido comum e no sentido benjaminiano). Uma delas se instala na entrada da galeria. Temos que contorná-la, tocá-la, colocar-nos em relação à sua dimensão. Somos muito menores do que ela (como somos mínimos na paisagem do Eixo Monumental). Outra é instalada dentro do Museu Nacional (também de Niemeyer). Quase espremida embaixo da rampa que dá acesso ao mezanino, ela se rebela, se espalha, impõe a cor ao branco. Começamos a perceber que ela tem muito a dizer ao espaço do arquitetopoetadasformas. Ela é cúmplice e crítica dos vazios generosos e, muitas vezes, áridos dos prédios-esculturas.
Curitiba, 2012: Museu Oscar Niemeyer. Grandes vãos sustentados pelas colunas em forma trapezoide, presença recorrente nas obras de seu criador, cercado pelo espelho d'água que reflete a forma mais inusitada da edificação: o olho. É nesse espelho d'água que Geraldo instala seus pilares-espelho... Pilares que não sustentam nada, que não tem alicerce, não têm peso, flutuam na água... Suas "Estruturas brincantes". Estranhamento e conforto, deslizamentos do olhar sob o grande olho construído. 9
O que nos faz pensar na relação da intervenções de Zamproni nas áreas que circundam as edificações de um estilo de arquitetura que se filia (não sem muitos problemas) às postulações da Carta de Atenas 10, naquilo que determina a sua implantação. A ideia de fazer a cidade "respirar" com os espaços abertos em torno dos prédios tem gerado inúmeras discussões nesses quase cem anos da escritura do documento. Uma das questões que é recorrente (e que um habitante de Brasília, como eu, conhece tão bem) diz respeito a como se dá essa ocupação pelos seus destinatários: os moradores da cidade e seus visitantes.
Esse parece ser um ângulo interessante para se abordar a obra do artista. O non sense das formas enormes e leves implantadas por ele 11 – sempre em diálogo com a arquitetura e o urbanismo (inseparáveis, para os termos da Carta) – problematizam o espaço idealizado e, a um só tempo, oferecem-se ludicamente como ativadores dos mesmos, como atrativos, como enigmas a serem decifrados ou... brincadeiras que humanizam o concreto.
Pilares que se deslocam sobre a água pela ação do vento. O que sustentarão? Pensando no fato das intervenções de Geraldo Zamproni localizarem-se em museus e espaços culturais, podemos supor que eles destinam-se a sustentar certa estrutura impalpável - metaforizada por Georges Bataille, no verbete Museu, de seu Dicionário Crítico - em pulmões que oxigenam, limpam o sangue (seu fluxo no corpo do humano e por vizinhança de sentido, no corpo da cidade). Afinal, como ele nos diz, "O Museu é um espelho colossal onde o homem contempla a si mesmo...". Podemos assim lançar nosso olhar para as colunas flutuantes com a esperança de decifrarmos, sobre elas, quem sabe, o que oxigena nossa vida cotidiana.
Marília Panitz
Brasília, setembro de 2012
NOTAS
1 COSTA, Lúcio Considerações sobre a arte contemporânea (1940). In: Lúcio Costa, Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. p. 601. volta ao texto
2 In " La prise de la Concorde", 1974, apud, DISERENS, Corinne "O filme arquitetônico de Matta Clark, Revista Trópico, http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1095,3.shl. volta ao texto
3 "Critical Dictionary", verbete Museu, In, BATAILLE, LEIRIS, GRIAULE, EINSTEIN, DESNOS, "Encyclopedia Acephalica", Atlas Arkhive Three/Documents of the avant garde, London : Atlas Press, 1997, p. 64. volta ao texto
4 BENJAMIN, Walter, Passagens, Belo Horizonte: Imprensa Nacional/UFMG, 2006, p 935. volta ao texto
5 A 30ª Bienal de São Paulo tem como um dos seus eixos, esta discussão das fronteiras entre arte e arquitetura. volta ao texto
6 vide seu trabalho do premiado no Salão de abril de Fortaleza, em 2008, onde mãos brotam da parede, quase indiscerníveis ao primeiro olhar, na sua brancura. volta ao texto
7 Ver "Rua de Mão Única", Volume II de suas obras escolhidas. (Ed Brasiliense, já em sua 6ª edição, 2004). Ver seu "Livro das Passagens" (Imprensa Nacional/UFMG, 2006) volta ao texto
8 Geraldo me conta que" Estrutura Volátil" passa a ser uma frase de ordem que surge para dar nome à obra do Prêmio Funarte em Brasília, mas que este trabalho já tinha sido mostrado na Bienal do Milênio em Granada-Espanha. Penso em como deveria ser a imagem destas enormes formas em relação á paisagem urbana de Granada em seus tons de areia e ocre. volta ao texto
9 Essa obra de Zamproni me faz lembrar minha primeira visita ao "museu do olho", há alguns anos. O que mais me impressionou na época foram os enormes cones de madeira de Eduardo Frota, expostos justamente no grande vão do Museu. Eu já os tinha visto na 26ª Bienal de São Paulo. Sua dimensão, dentro do espaço do prédio da Bienal, era impressionante. Parecia que se tinha necessariamente que olhar para dentro dos cones . Essa era a relação direta, íntima. No MON, eles passaram a ter o espaço em torno deles, o distanciamento (ou melhor a perspectiva paradoxal de um dentro e um fora como pendulação da fruição da obra). O trabalho de Zamproni, agora instalado no Museu reafirma essa vocação desse local de passagem sustentado pelas colunas. volta ao texto
10 O grande manifesto urbanístico que muda o pensamento ocidental para a área, escrito no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (em Atenas, 1933), do qual Lucio Costa é um dos autores e signatário. Brasília (assim como a obra de Niemeyer) é filha dessa carta. volta ao texto
11 Há um outro trabalho que ajuda a esclarecer estas relações : sua série Sustentabilidade associa, pela ação de um zíper blocos de concreto e grama natural (onde se identifica a referência a Nelson Leirner) foi implantado na parte externa do Paço das Artes de São Paulo em 2010 e premiado no SPA das Artes, de Recife, em 2011. volta ao texto