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outubro 29, 2012
O Legado da Coruja - Chris Marker por Moacir dos Anjos
O Legado da Coruja - Chris Marker
MOACIR DOS ANJOS
O Legado da Coruja (L’Héritage de la Chouette) é um dos mais instigantes e dos menos conhecidos dos muitos projetos realizados pelo cineasta francês Chris Marker ao longo de uma trajetória de trabalho que já conta seis décadas. É sua mais ambiciosa intervenção no meio televisivo e foi exibido originalmente nas televisões francesa e inglesa, em 1989, como uma série de 13 episódios. Depois disso, foi mostrado apenas algumas poucas vezes em festivais de cinema e exposições, sendo inédito no Brasil. Filmado em cinco cidades em um período de dois anos e contando com 49 convidados, tem como foco conceitos ou questões surgidos na Grécia Antiga que persistem importando como elementos organizadores do pensamento corrente no mundo ocidental. A coruja, animal que simboliza a busca por conhecimento, aparece como guia nessa jornada.
Os temas dos 13 episódios são: Simpósio, Olimpíadas, Democracia, Nostalgia, História, Matemática, Logomarca, Música, Cosmogonia, Mitologia, Misoginia, Tragédia e Filosofia. Ao longo de 5 horas e 30 minutos, o espectador é confrontado com a origem dessas palavras na Grécia Antiga e com a sua relevância para a criação e persistência das noções de Ocidente e de Europa.
Cada episódio é conduzido pelas falas de reconhecidos pensadores e artistas, permeadas por imagens que Chris Marker filma ou seleciona das mais variadas fontes e edita de modo original. O que emerge desse extenso painel não é, contudo, um panorama homogêneo e pacificado sobre aquele legado, mas um campo de disputa de posições e de conceitos onde há lugar para o contraditório.
Se a relevância de O Legado da Coruja na trajetória de Chris Marker e seu ineditismo no Brasil já justificam sua apresentação – sendo exemplo, ademais, do potencial reflexivo que o meio televisivo já teve e que hoje parece não possuir mais –, exibi-lo em um momento de grave crise financeira, social e política na Europa o reveste de interesse particular. E é justamente na articulação entre o trabalho do artista feito em 1989 e a situação corrente do mundo que ele buscava entender a partir do legado cultural grego que se ancora a presente exposição.
Apontada pelo Banco Central Europeu e pela União Europeia como uma das maiores responsáveis pela progressiva fragilização do padrão monetário europeu, a Grécia tem sido constantemente ameaçada de ser excluída da Zona do Euro e, por vezes, também da Comunidade Europeia. Para evitar esse desfecho traumático para todos, tem sido obrigada a penalizar gravemente a sua população mais desprotegida, garantindo assim os ganhos dos bancos que financiaram o endividamento do país e que muito lucraram com isso.
É irônico, senão paradoxal, que justamente o país cuja cultura mais contribuiu para a ideia de um mundo que se quer proteger do colapso esteja sendo culpabilizado pela crise que se abate sobre ele hoje. E que seja por meio da adoção de políticas que levam à redução do crescimento, ao desemprego e ao desmonte de políticas de amparo social que se busque preservar uma ideia de coesão econômica, social e política na Europa inteira.
Para marcar a atualidade do projeto de Chris Marker, a exposição é dividida em duas partes, cada uma delas ocupando uma sala da Galeria Vicente do Rego Monteiro. Na primeira, são exibidos os 13 episódios de O Legado da Coruja, projetados em sequência, de modo que a cada dia da exposição a série é mostrada integralmente. Na segunda, foi criado um ambiente de pesquisa e debate, em que informações sobre o artista e sobre a crise atual na Europa são disponibilizadas aos visitantes por meio de jornais, revistas, livros e outros vídeos. Além disso, profissionais de áreas diversas do conhecimento são convidados a refletir e a discutir, nesse ambiente e em outros da instituição, O Legado da Coruja e as circunstâncias de sua exibição aqui propostas.
A exposição possui, assim, duas camadas distintas que se articulam: o trabalho de Chris Marker e o contexto específico em que ele é aqui inscrito e oferecido ao público. Sem pretender criar uma ligação imediata e clara entre um e outro, o que a mostra quer é ativar a importância de (re)visitar O Legado da Coruja a partir do sentimento de urgência que a recente crise europeia desperta. Ou, considerada de outra maneira, o que se busca é construir uma plataforma de debate e reflexão sobre fraturas do mundo atual a partir dessa singular produção do artista feita há mais de duas décadas.