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setembro 24, 2012
Gais – As poucas modificações feitas não desfiguraram o diretório por Vanda Mangia Klabin
Gais – As poucas modificações feitas não desfiguraram o diretório
VANDA KLABIN
“Desenhar ainda é basicamente a mesma coisa desde a pré-história: é juntar o homem e o mundo.”
[Keith Haring, anos 1980]
Autodidata, Gais nasceu no Rio de Janeiro em 1980 e a partir de 1995 sua atuação artística passa a encontrar ressonância na esfera da vida urbana através de suas constantes intervenções em muros, viadutos ou empenas, seja por meio de pichações ou grafites. E é justamente nesse conturbado território, que o artista mostra a força de sua emergência e a potência de sua ação expressiva.
Essas incessantes interferências estéticas na trama cultural dispersiva da esfera urbana são, de natureza, efêmeras e transitórias, porém trouxeram um acréscimo estético ao acidentado percurso de sua vivência e imprimiram o seu vestígio na memória pública da cidade.
Suas buscas e inquietações estampadas em vários espaços públicos foram se caracterizando por experimentações de conteúdos geométricos surpreendentes e um novo vocabulário plástico foi sendo construído em relação direta com a aspereza das paredes.
Aquilo que era apenas uma manifestação urbana e os emblemas de uma desordem adquiriram uma nova espessura. Signos e imagens ganharam uma combinatória de intervenções vibráteis, fragmentos geométricos alusivos a sua adesão a uma linguagem construtiva brasileira, cuja influência tem uma presença bastante expressiva nas suas investigações estéticas. Seu trabalho adquire novos contornos no plano da tela e começa a participar de várias exposições de âmbito nacional e internacional.
Essa exposição na Huma Art Projects apresenta um conjunto de dez obras inéditas intituladas pelo próprio artista de fotomontagens, realizadas em 2012. Gais criou um novo espaço para a sua arte transitar, ampliando o campo de sua poética: aqui o seu trabalho se constrói a partir do recolhimento dos restos de um passado, da apropriação de ícones jornalísticos, recortes de revistas como “O Cruzeiro” e “Manchete”, adquiridas e selecionadas ao acaso, que remontam aos anos 1950 e 1960, que recebem também uma intervenção de tinta acrílica.
Atua agora em uma outra arena, coloca em cena a sua sensibilidade, estabelece novos acontecimentos plásticos que trazem uma singularidade ao lugar comum do mundo das imagens que povoam o nosso repertório cotidiano. Os resíduos de uma visualidade urbana encontram a sua equivalência poética nos fragmentos das revistas, nessa apropriação artística onde o vocabulário geométrico é o veículo para o fluxo de seu trabalho. Cria ambiguidades visuais entre a colagem, a pintura e a superfície colorida, recontextualizando e trazendo novas significações para o olhar.
São trabalhos híbridos, séries combinadas de sua pintura manuseadas com colaboradores anônimos, onde as pinturas e recortes se acomodam, criando um tecido estético irregular sobre a estrutura do suporte original. Através da aplicação de recortes na imagem original que perdeu a sua identidade, temos um continuum de planos fragmentados, resíduos visuais, uma descontinuidade do espaço como um obstáculo cadenciado por ritmos de cores. Essa compactação em alguma áreas tem uma espontaneidade calculada, não podemos mais ver o todo, mas as colagens funcionam como códigos interpenetrados por abstrações.
O sentido de sua obra emerge da reunião desses recortes abstratos, da dissolução da imagem inicial que representa a matriz do seu processo de trabalho, pela contradição entre a pintura e a desconstrução do real. O sentido da visão é obstruído, torna-se um mundo ausente de significados, sem identidade ou lógica entre as partes.
Essa fusão intrigante nos coloca meio à deriva, diante do impasse do real, para um mundo que traz uma opacidade reconfigurada. A imagem que podemos visualizar, deslocada do seu lugar de origem, é quase uma metáfora da nossa ilusória vida contemporânea e da artificialidade do olhar.
Percebemos também a presença de fatias de humor com as colagens, criando obstáculos para a visão, como um jogo ou uma armadilha entre algo único e singular e a sua duplicação, agora dissolvida e alterada pela interferência do artista. Ao aplicar fragmentos selecionados e recortados nas páginas ainda não molestadas, cria um sincopado visual, um puzzle, o que resulta em uma justaposição de cenas do cotidiano, agora cifradas e intraduzíveis através dessas colagens cuja essência é a geometrização, trazendo novos conteúdos estéticos, mas mantendo sempre um olhar constante para a produção da arte concreta e neoconcreta brasileira.
O crítico de arte William Rubin afirmou, a respeito do artista Jasper Johns, que a imagem tem sentido em sua falta de sentido. Essas pequenas colagens coloridas, abstratas, aparentemente banais, mas repletas de qualidades visuais, nos intrigam e nos interrogam.
Gais respira inquietação e, como ele sempre afirma, “acordo pensando em arte, passo o dia pensando em arte e vou dormir com arte na cabeça”.
Vanda Mangia Klabin, curadora
agosto de 2012