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setembro 3, 2012
Emaranhados por Mario Gioia
Emaranhados
MARIO GIOIA
O que este coelho fita com um olhar tão determinado? Para onde a observação fixa deste urubu se dirige? Algumas das possíveis respostas têm a ver com quem vê tais figuras, que pode encarar os desenhos de grande escala criados por Fernanda Chieco _ exibidos agora na individual Duas na Sala do Trono, na galeria Eduardo Fernandes _ como um espelho, um portal ou, quem sabe, uma cela ou uma jaula. “É que a visão se choca sempre com o inelutável volume dos corpos humanos. [...] E eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?”1, questiona o teórico francês Georges Didi-Huberman.
Protagonistas das duas obras, o coelho e o urubu constituem a força motriz da nova série de Chieco, ao lado do polvo, do leitão, do peixe-pênis, do peixe-monstro, do baiacu, da arraia, do cordeiro, das carcaças de peixe e até de uma pequena árvore e de urso de pelúcia. É certo que o olhar das duas figuras agora apresentadas desafia mais enfaticamente quem as assiste. De forma mais sintética na sala expositiva, Coelho (2012) e Urubu (2012) potencializam sentidos anteriormente tocados pela artista paulistana em Trono de Pescador, mostra que esteve em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, até o início de agosto.
Instalados na Sala das Princesas e na Sala Luis de Vasconcelos, os dez desenhos de Trono de Pescador só exibiam animais mortos, personagens retratados com tubos, fios e cânulos que não mais possibilitavam a vida, atores de uma narrativa que se encerrava nela mesma. Hoje, em Duas na Sala do Trono, os bichos nos impõem, ainda que de forma melancólica, outros embates e relações.
Tão fortes quanto o coelho e o urubu são os elementos de mobiliário doméstico descartado e que, nas composições da artista, adquirem novo status. Chieco concebeu tais obras em residência na Coreia do Sul. No país que angariou a denominação de “tigre asiático” por conta do crescimento econômico que passou especialmente nos anos 90, a paulistana estranhou a grande quantidade de cadeiras, poltronas, sofás e bombonas abandonados por esquinas, cruzamentos e fundos de terrenos. Deslocados das funções iniciais, os objetos provocam fricções no tecido regular da urbe asiática, como a atestar uma memória do resíduo que insiste em permanecer, índice de um espaço em transformação contínua e nem sempre positiva. “ ‘A caminhada é um dos nossos derradeiros espaços de intimidade’, diz ele [Francis Alÿs]”2, aponta Nicolas Bourriaud em Radicante, reforçando o caráter movente do artista contemporâneo, aspecto na qual Chieco pode ser filiada.
E a artista oscila entre um caráter deambulatório, por meio dos percursos cotidianos, e a âncora num suporte marcado pela rigidez, pela resistência. O lápis de cor se inscreve duradouramente no hanji, papel utilizado por Chieco como superfície particular de seus traços. A cor entre o bege e o amarelado e a rede intrincada e densa de fibras faz com que o desenho não traga nada de esboço. “Errou, joga fora”, comenta a artista, que tem de adaptar as composições ao corte pré-determinado do material _ ele não é vendido em rolos, e sim em folhas, e a publicidade das lojas que o comercializam enfatiza a durabilidade de mais de 1.000 anos.
Assim, a poética de Chieco se assenta em inquietações contemporâneas e movediças, questionando a lógica do consumo desenfreado e dando novos contornos a procedimentos que poderiam ser artesanais ou anacrônicos. Como Argan já alertara em História da Arte como História da Cidade: “Não temos nenhuma dificuldade em admitir que a cidade, no sentido mais amplo do termo, possa ser considerada um bem de consumo [...]. Trata-se, em suma, de conservar ou instituir ao indivíduo a capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou; enfim, de dar-lhe a possibilidade de não se assimilar, mas de reagir afetivamente ao ambiente. [...] É essa passagem que a cidade moderna deve realizar, a passagem da concretização, da dureza das coisas, à mobilidade e mutabilidade das imagens”3. Móvel, mutante, a obra de Fernanda Chieco sempre reelabora as questões: O que vemos? O que nos olha?
Notas
1. DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que nos Olha. São Paulo, 34, 2010, p. 30
2. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 96
3. ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 219 e 220 , p. 219 e 220