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julho 6, 2012
BANG, 2012 - Instalação fotográfica de Ana Vitória Mussi por Katia Maciel
BANG, 2012 - Instalação fotográfica de Ana Vitória Mussi
Ana Vitória Mussi - Bang, Oi Futuro, Rio de Janeiro, RJ - 22/05/2012 a 15/07/2012
Leia também "Nem uma gaivota..." de Marisa Flórido Cesar, curadora da mostra.
O bandido atira contra a câmera que o captura e nós, espectadores, desde 1903, com O Grande roubo de trem 1, somos alvos do bang bang do cinema.
Em Histoire (s) du cinéma, Jean-Luc Godard repete, na forma de texto gráfico visual e na voz off, Histoire avec un s, História com s. Vemos, então, as histórias do cinema nas batalhas e guerras do século XX. O cineasta resume a história do cinema americano como a girl and a gun. A girl and a gun, Godard repete ao longo do filme. A fórmula de Hollywood decomposta na montagem do autor que, para frente e para trás, movimenta a moviola e seu ruído. Montagem, assemblage, colagem, mistura não apenas do cinema e sua história, mas de seus continentes, europeu e americano, em cruzamentos, disputas, intrigas: a história do cinema como gênero cinematográfico. O cinema, seus heróis e covardes, suas divas e vítimas. Histoire avec un s.
Em 1991, Jean Baudrillard escreveu, em La guerre du golf n’a pas eu lieu, publicado no jornal Libération:
O drama real, a guerra real, não temos nem mais o gosto, nem a necessidade. O que precisamos é o sabor afrodisíaco da multiplicação do falso, da alucinação da violência, o que obtemos de todo prazer alucinógeno, que é também o prazer, como na droga, da nossa indiferença e da nossa irresponsabilidade, portanto da nossa verdadeira liberdade”. Para concluir: “É a forma suprema da democracia. 2
Este texto poderia ser uma critica aos filmes de Quentin Tarantino. Edição de imagens de naturezas distintas: fotografias, séries televisivas e animações em filmes que ultrapassam os acontecimentos em seus aspectos históricos, morais e éticos. O que fazer quando tudo já aconteceu? Refazer tudo em um movimento contemporâneo de eterno retorno. No caso do cinema americano, Tarantino gera um pastiche de violências do western ao filme noir, do burlesco à guerra mais visceral, onde os heróis afundam sem o alento da vitória. Uma outra nouvelle vague, um outro neo-realismo, na total desrealização do jogo americano do culto ao herói. Não existem heróis, só bandidos, não existe a paz, só a guerra, a pior de todas, aquela de todos os dias, aquela que nos torna indiferentes ao sangue, ao suor e as lágrimas.
Na exposição Bang, de Ana Vitória Mussi, três paredes abrigam quatro projeções que se tocam e funcionam para dentro e para fora, no deslizar do movimento parado, no entrecruzar das formas e ritmos que combinam as imagens que passam como em um filme. Um filme contrastado pelas fotografias que fixam o que mostra a televisão da artista, para ela, uma janela para os acontecimentos em versões que se materializam e desmaterializam no tempo do click da câmera que opera.
A instalação-filme Bang transcende a relação entre a artista e a curadora. Juntas na edição de imagens, orquestrando a um só tempo a guerra que se pacifica no olhar, elas nos paralisam nos batimentos fotográficos precisos como os alvos a serem atingidos. Olhar que, aos poucos, entra em sincronia com o sublime das imagens que mostram, nas palavras de Jean Baudrillard, um real sem origem nem realidade, porque tudo é cinema.
A mulher olha, a arma atira, os corpos mergulham, os aviões planam e nós, imersos no movimento do tambor que gira imagens e tanques, somos acolhidos no preto e branco do cinema em todos os tempos e pela trilha de Tarantino em seu bang bang. E o tempo é bergsoniano porque aqui o passado é contemporâneo do presente que ele foi. Nos termos colocados por Gilles Deleuze, em seu texto A ilha deserta 3, a duração é uma memória, porque ela prolonga o passado no presente. Bergson enuncia que o presente vai progressivamente, com o envelhecimento, tendo uma carga mais pesada de passado. Para o autor, o passado sobrevive em si, como lugar no qual nos colocamos para nos lembrar: o passado é o em si, o virtual, o presente que ele foi e o atual presente do qual agora ele é passado. Deleuze repete Bergson, estendendo o pensamento da imagem em si para a imagem como o puro do tempo, como o virtual do tempo, como a imagem-tempo.
A instalação Bang, de Ana Vitória Mussi, nos acorda com a delicadeza das imagens que flutuam no presente de um passado que não passa nunca, porque as imagens são mais que arquivos: são percepções incrustadas em nossos corpos, como a guerra e o cinema.
1 The Great train robbery, filme dirigido por Edwin S. Porter, produzido pela Edson filmes. (volta ao texto)
2 "Le drame réel, la guerre réelle, nous n’en avons plus ni le goût ni le besoin. Ce qu’il nous faut, c’est la saveur aphrodisiaque de la multiplication du faux, de l’hallucination de la violence, c’est que nous ayons de toute chose la jouissance hallucinogène, qui est aussi la jouissance, comme dans la drogue, de notre indifférence et de notre irresponsabilité, donc de notre véritable liberté. » Et de conclure : « C’est la forme suprême de la démocratie." Jean Baudrillard (volta ao texto)
3 Bergson (1858-1941). In ____ Gilles Deleuze. A ilha deserta. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006. (volta ao texto)