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julho 6, 2012
Nem uma gaivota... por Marisa Flórido Cesar
Nem uma gaivota...
MARISA FLÓRIDO CESAR
Ana Vitória Mussi - Bang, Oi Futuro, Rio de Janeiro, RJ - 22/05/2012 a 15/07/2012
Leia também o texto de Katia Maciel.
A legenda alerta: estamos na suspensão do “ainda não” que antecede o estopim da arma, o clique da câmera fotográfica, a deflagração do trágico acontecimento: a guerra. Um segundo tão asfixiante que parece se estender ad aeternum.
Guerra, fotografia, cinema, televisão – muitos já disseram o quanto estão indissociáveis. Há uma estreita e longa relação entre as imagens técnicas e os conflitos bélicos. Se cenas da Primeira e da Segunda Guerra Mundial nos chegavam pelas películas cinematográficas, logo as imagens de guerra, do Vietnã à do Golfo, seriam transmitidas via satélite, pela televisão. É por essa janela em nossas casas que assistimos às guerras viscerais desta cidade, às invasões nas favelas, ao som ensurdecedor da artilharia, a população acuada e muda. Nenhum pássaro cruza, nenhum cão ladra. Estamos aqui e não lá, talvez pensemos aliviados, ainda que este “lá” esteja em imediata proximidade, ainda que os estrondos das armas que ouvimos bem aqui à nossa volta se confundam com aqueles emitidos ao vivo pela tevê. A mediação e o brilho dos holofotes midiáticos cegam e anestesiam a dor desse desamparo.
Em Bang, de Ana Vitória Mussi, cenas de guerrilha urbana nos morros cariocas (emitidas ao vivo e fotografadas da televisão) são intercaladas com cenas de filmes e documentários da Segunda Guerra Mundial, ao som da canção que compõe a trilha sonora do filme Kill Bill, de Quentin Tarantino. Ana Vitória interrompe o contínuo temporal das imagens em movimento do cinema e da tevê pela fotografia, as edita e monta em associações singulares: o salto do atleta olímpico do documentário de Leni Riefenstahl e o voo do avião de combate (os quase deuses e suas quedas); a complexa triangulação dos olhares com as máquinas de guerra e as máquinas de imagem (da fotográfica ao celular); a suavidade e a redenção do amor em tempos de insanas brutalidades.
As imagens são projetadas como um slideshow na sala escura do cinema. Salvo que, nesta instalação, não estamos no conforto das poltronas, mas em meio ao bombardeio de quatro projeções que nos obrigam a uma dança corporal, na busca ou na esquiva dos disparos das imagens e do lugar de sua próxima aparição.
Há mais de quatro décadas, Ana Vitória Mussi dedica-se à investigação da fotografia, explorando seus limites e possibilidades além dos usos e meios convencionais. Estendeu-a além da cópia no papel, abriu seu campo perceptivo e semântico, dialogou com os dispositivos de produção de imagem, como o jornal, a tevê e o cinema. Em interlocução com essas grandes mídias, a artista vem indagando as formas de uso e monopólio, de mitificação e exemplaridade das imagens. Refletir suas potências e fantasmagorias, interrogar a condição da imagem no mundo contemporâneo e nossa submissão a seus poderes – eis o que faz.
Por isso, à artista não interessa fotografar a guerra, mas seus modos de exposição, visibilidade e espetacularização: o que relaciona a imagem à violência e a violência à imagem, o que aproxima o homo videns do homo belicus.
Tecnologias de guerra romperam visões homogêneas, armas aéreas violentaram o continuum espacial. Se, “para o homem da guerra, a função da arma é a função do olho”, como disse Paul Virilio, também poderíamos dizer que a função do olho mecânico, a máquina fotográfica, é função da arma. O ato fotográfico é um golpe deferido na ilusória continuidade espaço-temporal, que a isola do contexto e faz da fotografia um fragmento errático e afásico, a partir do qual pouco se pode dizer sobre seu tempo, lugar e acontecimento. Todavia, a máquina de imagem é de guerra não apenas por seu laço com a morte, com “o isto foi”, como a definiu Roland Barthes, mas porque guerras se travam por meio da imagem, guerras se travam entre imaginários. No documentário O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, a multidão conforma o grande corpo coletivo e sem individualidades da nação ariana, em que apenas uma cabeça, uma face e uma voz dominam a cena: aquelas do ditador deificado. Como prefigurado nos filmes de Hollywood, as Torres Gêmeas são abatidas pelo inimigo que condena a imagem, difundindo seu espetáculo de morte – como imagem – aos olhos aturdidos de um mundo que o assiste pela tevê. O pastor evangélico chuta a imagem de uma santa católica, execrando a idolatria, em sua tele-evangelização em rede nacional. As fronteiras entre fato e ficção, entre propaganda e registro revelam-se sempre difusas.
A iminência de algo que pode ser o fim (a morte) ou o triunfo heroico sempre rondou as imagens de Ana Vitória Mussi. São situações-limite da existência humana, sua falta de chão. Como os corpos no ar dos saltos olímpicos ou os aviões em queda, envoltos em profunda melancolia e solidão. Como a fotografia, a existência é um fragmento errático, mudo, insignificante. Resta descobrir a delicadeza, reencontrar a humanidade na saturação cotidiana da violência e de suas imagens.