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junho 20, 2012
A vida pulsa na dOCUMENTA (13) por Daniela Bousso
A vida pulsa na dOCUMENTA (13)
Com fotografias de Eide Feldon, especial de Kassel para o Canal Contemporâneo
Documenta 13, Kassel, Alemanha - 09/06/2012 a 16/09/2012
A dOCUMENTA (13) no Canal Contemporâneo
A conferência de imprensa da dOCUMENTA (13) abriu com a presença de mais de mil jornalistas que vieram de vários países. Após os agradecimentos convencionais, a diretora artística Carolyn Christov-Bakargiev (doravante CCB) leu os trechos mais importantes de sua conferência.
O texto enuncia alguns dos conceitos utilizados para a mostra, dentre os quais destacamos algumas palavras que nortearam os raciocínios e percursos da curadoria: compromisso (que também pode ser lido como engajamento), sem lugar (unplaced), deslocamento. CCB citou também a existência de uma coreografia frenética e não harmônica, uma espécie de dança deslocada, que antagoniza com a ideia de onipresença e afirmou que a dOCUMENTA (13) não pretende ser global.
Apoiada nestas ideias, a mostra vai ocupar, ao todo, quatro locações, posições básicas para a configuração de suas ações. As cidades de Kassel, Cabul / Bamiam, Alexandria / Cairo e Banff, focadas em diferentes modos de ser e estar no mundo, embalam diferentes temporalidades e ações culturais, as quais, por vezes, incluem aquelas que não abrangem a cultura “ocidental”.
Nesta mostra, a abrangência de diferentes áreas do conhecimento e da cultura envolve física, biologia, ficção, filme, música, dança, ações educativas e editoriais e uma vasta gama de pensamento teórico. A lista de participantes da dOCUMENTA (13) atesta o alcance cultural almejado por CCB e sua equipe. Poetas, músicos, filósofos, antropólogos, pensadores, escritores, críticos culturais, coreógrafos, historiadores de arte, escritores, agentes, configuram 50% das participações e estão assim denominados, para além da participação dos artistas e curadores envolvidos.
A curadora falou em colapso da destruição, da contribuição da “modernidade feminina” e de um “político contestatório”, em relação às formas opressoras de poder e às políticas de transformação do conhecimento, além de ter falado de natureza e de sustentabilidade. Estes são alguns dos eixos propostos pela mostra e CCB aponta para uma disposição em propor um percurso abrangente que se desdobra em sucessivas camadas, para evidenciar a colisão entre ausência e silêncio e para a busca da dessincronização no contexto atual. O que a dOCUMENTA (13) pretende, nas palavras da curadora espanhola Chus Martínez – braço direito da diretora artística – “é indagar sobre como se recuperar de um colapso ético, econômico e emocional” (Entrevista dada a Camila Molina no Estado de S. Paulo).
A dOCUMENTA (13) privilegia os arquivos, a informação disseminada, o trabalho coletivo e uma postura de recusa ao julgamento. Ela enuncia, ainda, um resultado incompleto, que deixa uma série de questões sem resposta. A ideia de inexistência de um conceito fechado para a dOCUMENTA (13) pretende envolver o espectador por meio de uma experiência perceptiva e expandir o foco para as culturas não “ocidentais”, em função de se privilegiar uma experiência fenomenológica: “O conceito está divorciado da percepção, afirma CCB”.
A influência de pensadores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Rudolf Arnheim, Ernst Hans Gombrich, Susan Sontag e Merleau-Ponty, entre os clássicos, evidencia um constructo teórico que espelha uma característica geracional, típica dos que fizeram a sua formação teórica entre os anos 1970 e 1980. Mas nota-se também o avanço das pesquisas no universo teórico, na medida em que a curadoria envolveu e deu voz a artistas, pensadores, antropólogos, críticos e historiadores de arte da atualidade.
Isto é claramente perceptível no conjunto de três grandes prateleiras, na livraria da dOCUMENTA (13), que reúne a literatura teórica utilizada pela curadoria, além das publicações produzidas em formato de brochura que integram a mostra. Estas últimas abrangem nomes como os de Walter Benjamin, Chus Martínez, William Kentridge, Eduardo Viveiros de Castro, Donna Haraway, Anton Zeilinger, Boris Groys, só para citar alguns deles.
A exposição ocupa oito locações institucionais, entre elas o museu Fredericianum, o Documenta-Halle, o Ottoneum, a Neue Galerie e a Orangerie. Expande-se também para diferentes locais no espaço urbano como a Hauptbanhoff, o ex-hospital Elisabeth, que inclui de cerâmicas de Barmak Akram a filmes e, ainda, documentário sobre seminários desenvolvidos em Cabul durante o processo de feitura da dOCUMENTA (13). Em uma antiga confeitaria adaptada para esta edição da mostra, encontramos uma série de pinturas em pequenos formatos de Francis Alÿs.
É a primeira vez que uma curadoria, em Kassel, ocupa o espaço urbano desta forma, envolvendo toda a cidade e expandindo a mostra ou ações para outros lugares. Muito embora a edição da Documenta 11, curada por Okwui Enwezor há dez anos, tenha ministrado seminários em outros continentes. Agora, a mostra em Kassel inclui hotéis, cinemas, teatros, o Bunker Weinberg, a biblioteca central, o palácio do congresso, as ruas e o parque Karlsaue, com obras de 50 artistas, que conflui com o espaço da Orangerie. Há obras por todos os lados na cidade e podemos afirmar que o melhor da dOCUMENTA (13) está fora dos espaços museológicos. Não só em termos de obras, mas também conceituais.
Na Huguenothouse, o grupo Theaster Gates, de músicos e performers, ocupa todos os andares do edifício. Apresenta performances musicais e registros em vídeo e apresentações de diferentes músicos. Soma-se a isto um espetáculo que transcorre num breu total, que finda e se reinicia reiteradamente, envolvendo canto, dança e a participação do público. Gostemos ou não, o espetáculo se desenrola no escuro e por vezes tivemos a sensação de estar participando de um workshop de bioenergética dos anos 1980. Mas a performance cresce em seu mérito pela capacidade de criar proximidade com o espectador e conquistar a sua confiança. Por um instante, naquele quase darkroom, após sermos conduzidos por mãos firmes e encontrarmos um espaço que nos acomodasse, pudemos ver alguém se soltar e dançar de rosto colado com um dos atores; a emoção impregnava o ambiente.
Mesmo que a mostra apresente altos e baixos – como toda exposição deste tipo – por vezes descortinando uma visualidade nem sempre contemporânea, de pegada retrô, há algo de novo nesta Documenta. Há um frescor e uma constante sensação de que estamos diante de matérias vivas, finalmente, como há tempos não se via em arte contemporânea, algo que toma assento num território da ordem da afecção, do afeto propriamente dito.
A vida pulsa nesta Documenta. Há muito pouco da museificação burocrática que se impõe sobre a arte contemporânea e o que parece prevalecer é mesmo uma indagação geral da arte sobre as grandes questões que preocupam o planeta agora: as catástrofes ecológicas, as sucessivas guerras, a destruição em massa, as diferentes temporalidades e as diferenças entre graus de desenvolvimento humano e artístico.
O que parece estar em pauta nesta mostra é a construção de um grande quebra-cabeça, que vamos montando em seu percurso e aos poucos desvelam-se as camadas propostas pela curadoria, quando podemos notar "a trajetória da destruição do simbólico e do corpo físico em nossos tempos, a invisibilidade dos sentidos, a oposição entre aparência e julgamento", encetadas por CCB e sua equipe.
Instalações singulares parecem ligadas não pela proximidade no espaço físico, mas por certos lastros deixados em nossos perceptums. É o caso das obras de Geoffrey Farmer, com a instalação "Leaves of grass" na Neue Galerie e de Yan Lei, com a instalação "Limited Art Project", no Documenta Halle. A primeira apresenta um imaginário retirado de dezenas de edições da revista norte americana Life, traz imagens que remontam de 1935 a 1985. São recortes de fotografias montados sobre varetas para fazer pipas (é assim que as imagens se sustentam em pé) e instaladas sobre uma base, sobrepostas, como se fossem uma enorme nave (pensei na arca de Noé).
A segunda acumula, em uma grande sala, uma série de réplicas de imagens capturadas da Internet. Uma mapoteca vertical deslizante traz telas penduradas, que podemos puxar para frente e para trás para ver mais obras; há pinturas do chão ao teto nas quatro paredes da sala. Ambas as obras implicam o envolvimento do expectador por trabalharem com o excesso de imagens e com o acúmulo. E cada uma delas, com sua especificidade, nos fisga na primeira mirada. Não são exatamente obras fáceis, não se engane aquele que possa assim pensar. Ao contrário, trabalham com as fronteiras do imaginário pelas vias do excesso e pela alusão aos limites e ao consumo da arte contemporânea.
O respeito às diferenças culturais no convívio entre diferentes mundos, como por exemplo Oriente/Ocidente, resulta, às vezes, em um apanhado de obras de linguagem por demais auto referenciais e podem tender a um retrato literal e sociologizante de uma dada realidade. É o caso do conjunto de desenhos e do vídeo apresentado pelo grupo Dinh Q.Lê, com treze artistas participantes, com conteúdos de guerra muito óbvios, instalado no parque Karlsaue.
As melhores obras estão nos parques e nas ruas. No Parque Karlsaue, estão artistas como Anna Maria Maiolino, Anri Sala, Pierre Huyghe, Apichatpong e a dupla Cardiff&Miller. É neste parque que a exposição se porta da forma menos museológica possível, num contraponto fenomenal à Documenta anterior: montada sobretudo "pour épater les bourgeois" e para compor com patrocinadores, a Documenta 12 configurava um grande complexo expográfico. A dOCUMENTA (13) definitivamente não é para iniciantes, nem para pouco iniciados e muito menos para o espetáculo.
Não há exatamente tensão ou fricção no diálogo – ou não diálogo – entre obras. A sensação de estranhamento decorre de uma constelação de trabalhos e ações que oscila entre o sublime e o bizarro, por vezes análogos ao nonsense comum ao Surrealismo. Pelas vias das mãos experientes da curadoria, notam-se os rebatimentos do Modernismo sobre a contemporaneidade artística. No entanto, a análise da curadora, que afirma “Quando o mundo é absurdo, um intelectual tende a ir em direção ao surrealismo” (Matéria de Fabio Cypriano na Folha de S. Paulo), pode limitar a leitura e a grandeza de muitas das obras expostas.
Deslocadas dos espaços museológicos e alocadas na Hauptbanhoff, antiga estação de trem, estão as obras de William Kentridge, Cardiff&Miller e Clemens von Wedemeyer, entre outros, com abordagens intrigantes e sensíveis, pelo seu potencial de comunicação com o público e pelo seu alto grau de afecção. São trabalhos que atingem os nossos sentidos por suas poéticas humanistas e por acionarem a nossa percepção. Não houve quem não se emocionasse com a beleza ímpar da instalação "A recusa do tempo" de Kentridge e com o alto grau de sensibilidade despertada em nós pela obra de Cardiff&Miller, seja na estação, seja no parque Karlsaue.
A experiência sensível é muito forte na obra "Alter Banhoff Video Walk", de Cardiff&Miller. Eles nos convidam para uma caminhada leve na antiga estação e nos conclamam a interagir com a obra. De saída, propõem uma forma não tradicional de acionamento da nossa percepção. Recebemos um par de fones de ouvido e um IPod da produção da mostra. Ao colocarmos os fones de áudio, começamos a ouvir a voz de Janet que nos dá as primeiras orientações do percurso. Ao som de sua voz, caminhamos dentro da estação e o IPod vai emitindo imagens criadas pela dupla, ao mesmo tempo em que o áudio dispara distintas sonoridades, que mesclam sons musicais aos ruídos de chegada de trens, ou de carregamentos feitos na estação; prosseguimos acompanhando as imagens e sons.
O som que ouvimos, na verdade, é um chamamento à atenção para aquilo que está ao nosso redor, ao espaço onde estamos e à sua escala. O paradoxo ocorre pelos não limites entre poesia, ação corporal, sonoridade e percepção visual. Na apreensão do todo, a desconexão entre tempo presente real e passado recente imediato se entrelaçam em nossa memória... O que acabamos de ouvir de alguma forma parece se materializar então, em tempo real, diante dos nossos olhos. Realidade e ficção se mesclam, deixando-nos por vezes atônitos.
A dOCUMENTA (13) configura um mosaico pluridisciplinar; ela não é apenas uma exposição de artes visuais. Para desvendar as suas diferentes facetas é preciso estar disposto a ver e encontrar a arte. É necessário preparo físico e tempo para realmente perceber e aproveitar a exposição. Difícil compreendê-la em toda a sua complexidade sem o tempo necessário à reflexão. É uma exposição para se ver junto a outros: amigos, namorados, colegas de trabalho, há muito para trocar. Se você quiser visitá-la ao modo "estou de passagem, só tenho dois dias", certamente dirá que a mostra é confusa. O desafio de juntar as partes nesta suposta “confusão” parece parte da estratégia da curadoria por uma desaceleração do tempo.
A noção de tragédia social e histórica resulta em fio condutor desta edição. Há uma urgência em recusar o atual estado das coisas e, pelas vias da arte, propor espaços de expressão libertária que parecem, loucamente, querer retomar as utopias perdidas do maio de 1968. Um dia John Lennon declarou: "O sonho acabou" e seguimos meio que anestesiados pela vida afora, entre o inconformismo e o conformismo, nós e também a arte, por meio século. E se o sonho de fato não tivesse acabado, mas apenas adormecido, e agora?
No convívio entre as obras presentes na dOCUMENTA (13), uma coisa parece estar clara: a nítida intenção na proposta da curadoria em desmontar alguns jargões que constituíram o estatuto da arte nos últimos tempos: a noção de qualidade, o projeto apriorístico, o embate entre formalismo ou não formalismo, conceito, harmonia, diálogo e conversa entre obras, suportes. Nesta mostra tudo convive, ainda que nem sempre em harmonia, mas tudo está exposto imantando a vida e talvez daí surjam as analogias com o Surrealismo.
A relação com o Surrealismo decorre das fugas de memória entre espaços e obras no percurso da mostra. São desconexões entre o real e o atual. Quando juntamos as partes do todo e o quebra-cabeça parece estar montado, reside em nós, ainda, a sensação de incompletude e nonsense. Ao fim da peregrinação, volta à memória o vazio propositalmente deixado nas primeiras salas do saguão de entrada do museu Fredericianum, que abriga uma obra em áudio na ala da esquerda e um forte sopro de vento logo na entrada, a gelar nossos cangotes e nos lançar o desafio: “Você está mesmo disposto a viver esta experiência?”
Daniela Bousso
Kassel, junho 2012
Documenta 13, Kassel, Alemanha - 09/06/2012 a 16/09/2012
NOTA DO CANAL: ver também a mostra Espelho Refletido: O Surrealismo e a Arte Contemporânea Brasileira, Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ - 10/06/2012 a 29/07/2012.