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outubro 26, 2011
A videocriatura é nossa! por Carlota Cafiero
A videocriatura é nossa!
Por Carlota Cafiero
Uma criatura nascida do cruzamento entre performance, teatro e videoarte no Brasil está completando 30 anos e continua exercendo fascínio e assombro por onde passa. Híbrido de imagem e corpo, máquina e carne, a Videocriatura é um marco na história da arte contemporânea brasileira, e o seu criador, Otávio Donasci, nome obrigatório para quem estuda videoarte e performance.
Tanto que ele está bem representado na exposição Instante – Experiência / Acontecimento em Arte e Tecnologia, projeto do SESC Campinas, em cartaz até 27 de novembro no Galpão Multiuso, ao lado de outros pioneiros no uso de novas tecnologias nas artes plásticas, como Waldemar Cordeiro, Marco do Valle , Paulo Bruscky, Cildo Meireles, Letícia Parente e Chelpa Ferro.
Donasci veio a Campinas nos dias 28 de setembro – trazendo as performances “A Ledcriatura Sobrevive ao Videotango” e “A Videocriatura Passeia de Videocleta” para a abertura da mostra – e 15 e 16 de outubro, quando ministrou o workshop “30 Anos Criando Videocriaturas”, após o qual ele falou exclusivamente ao site Canal Contemporâneo sobre a trajetória de performer e artista multimídia.
Aficionado pela imagem em movimento e pelo humorismo, Donasci confessa que “tomou um susto” ao se dar conta de que ele era o único artista do planeta a – literalmente – dar corpo a um monitor de TV de tubo. A primeira Videocriatura foi apresentada em 1981, durante um concerto intitulado “Nova-Mente”, regido pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), no Festival de Inverno de Campos do Jordão. Mais vanguarda, impossível.
Apesar de reconhecido como cenógrafo nos anos 70 e diretor, nos 90, ao lado de Ricardo Karman, do que ele chama de “expedições experimentais multimídia” – em espetáculos que quebram a separação entre artistas e público e misturam performance, teatro, turismo e vivências –, Donasci se considera um artista plástico.
Nascido Otávio Do Nascimento, em São Paulo, em 1952, Donasci entra nas artes por meio do desenho, do teatro e do humor. Já era cartunista quando descobriu o teatro aos 15 anos, no colégio Liceu Coração de Jesus, em São Paulo, onde escrevia esquetes e shows de humor. Trabalha como cartunista nos anos 70. Em 1973, ele entra para a Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), ao mesmo tempo em que começa a estagiar em uma agência de propaganda.
Desenvolve a carreira de cenógrafo em paralelo com a de publicitário e obtém reconhecimento em ambas as áreas. Passa a utilizar o vídeo como meio de expressão e resolve misturar suas maiores paixões – o design, o teatro e o humor – na criação de uma obra inédita em todo o mundo: a Videocriatura, com a qual se fez representar em duas Bienais de São Paulo e na Bienal de Kyoto, no Japão.
Sua Videocriatura também protagonizou quadros em programas de televisão (como no extinto “Matéria Prima”, apresentado por Serginho Groisman, na TV Cultura, nos anos 90) e propagandas de televisão. Mais informações sobre a obra do Donasci no site: http://www.videocreatures.com.
Em dezembro, Donasci vai participar do 2o. Perforum, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, com a vivência intitulada “Carinhódromo”. O evento vai ser realizado dias 1, 2 e 3 de dezembro, com mesas de debates e seminários acadêmicos e artísticos.
Leia trechos da entrevista com Otávio Donasci:
Canal Contemporâneo – No começo era o desenho...
Otávio Donasci – Eu desenho desde os 5 anos de idade. Quando chego ao ginásio é que começo a fazer teatro. Daí para frente é que comecei a fazer cinema e vídeo. Aprendi teatro fazendo desde os 15 anos, na escola. Tive a sorte de entrar em um colégio, o Liceu Coração de Jesus, que tinha um teatro de 800 lugares, que foi recentemente recuperado. Primeiro fizemos peças conhecidas e, depois, começamos a escrever peças que não eram peças, eram shows para angariar fundos para as crianças pobres do colégio. Fazíamos shows de humor. Eu já era cartunista e resolvi escrever humor.
Então o humor esteve sempre presente no seu trabalho.
Sim, tanto que o meu filho é humorista. Ele é o Daniel (do Nascimento) dos Barbixas. Todo mundo conhece. Era uma piada, porque nenhum deles tinha barba. Agora, o Daniel até trança a barba dele. Como eu sempre gostei de humor, cartum, eu também estudei humor, tenho livros, fiz entrevista com vários humoristas, como Manuel da Nóbrega, o José Vasconcelos, o Durval de Souza, gente que já morreu e outros que se suicidaram porque os humoristas são muito mal humorados. Eu falei para o Daniel tomar cuidado. Humor é que nem trabalhar em fábrica de chocolate, chega uma hora em que fica com nojo de chocolate, menos as mulheres (ri). Eu estudava os humoristas por minha própria conta.
E por que você se identifica tanto com o humor?
Vamos dizer assim, o que você prefere da arte? A parte chata ou a parte alegre? Meu raciocínio é o de que eu queria entender o humor. Por que é que ele é tão bom? Fui estudar e cheguei a coisas sérias de humor, a livros que falavam de humorismo e Deus,cheguei no Freud, Kiekeegard, Bergson, Kant, esses caras falavam do humor com uma seriedade muito forte. O resumo filosófico que eu cheguei do humor é que as pessoas dividem o mundo em coisas sérias e coisas que não são importantes, que são bobagem. Mas a vida da pessoa tem de ser completa, se você não tiver o lado bobagem, você não tem vida. A vida é feita de tudo isso. A parte séria só se sustenta por causa da outra parte. O humor é coisa séria. O Kant tinha medo de falar que o humor era coisa séria porque pegava mal para quem era filósofo. Comédia sempre foi considerada algo menor. Mas, hoje, fazer humor é a coisa que dá mais dinheiro.
Qual a relação do humor com as artes plásticas no seu trabalho?
Porque eu comecei a abordar o humor como tema. Eu sempre procurei o lado humorístico da coisa. Como cartunista, eu procurava o nonsense. Você ri e não sabe do quê. Bergson falava sobre as sete leis. Será q eu posso aplicar essa lei em qualquer coisa? Pensando em estética, posso fazer um açucareiro humorístico? Da década de 80 eu ainda não consegui separar tudo o que aconteceu na minha carreira. Fiz videoarte em uma época em que eu achava que não era nada de mais.
No comecinho dos 80 você já tinha uma trajetória reconhecida no teatro, recebendo prêmios como APCA e Mambembe.
Mas eu recebi prêmios ligados à cenografia. Como diretor, foi na década de 90. A minha escolha em teatro foi a de cenógrafo e de humorista. Sim, eu fui ator e diretor, mas por uma escolha plástica, porque sou um artista plástico, preferi a cenografia. Ou eu escrevia e fazia humor, ou eu fazia cenário. O resto foi experiência, tive experiência como ator e diretor. Como eu não gosto de ser escravo e não gosto de mandar em todo mundo, então, decidi não ser ator nem diretor.
Como cenógrafo, você já era interessado em utilizar vídeo?
Foi depois de conhecer o trabalho de Joseph Svoboda (1920-2002), da antiga Checoslováquia. Ele fez de tudo em cenário na década de 40. Ele era um gênio. Dá vontade de bater nele... Ele fez vídeo na década de 40, cenário-vídeo ao vivo. Só não fez Videocriatura, graças a Deus. Mas ele teve uma coisa que nós do teatro nunca temos. Apoio. O governo checo deu um teatro para ele. Ele era socialista, mas o teatro que ele fazia nem era para o povo. Era uma coisa muito sofisticada. Ou o povo checo era muito sofisticado...
Você conheceu o trabalho dele procurando referências?
Quando comecei a ter dinheiro para comprar livro de arte. Quando eu comecei a trabalhar como publicitário.
O que você fazia de diferente em cenografia?
Comecei a misturar instalação e não sabia que tinha esse nome. Eu usava a pesquisa de artes plásticas para aplicar na cenografia. O cenógrafo é um cara técnico. O diretor fala assim “eu quero uma sala bonita, não muito cara, de preferência, de graça, e você tem de se virar com lixo, ou pega o sofá na casa da sua mãe”. E eu comecei a procurar saídas, e nessa busca eu comecei a gostar das traquitanas. E eu cheguei até o cenário inflável fazendo teatro infantil, que não tinha muita moral. Quem fazia teatro infantil era a segunda classe do teatro. Mas a vingança do teatro infantil é que é o único teatro que dá dinheiro. Eu tive uma carreira que começou no teatro chamado ativista. Eu estava ligado a um grupo chamado Os Corujinhas (grupo musical e de teatro infantil), que ficaram muito famosos nos anos 70 e 80. Eles gravaram sete LPs e ganharam vários prêmios. Eu ganhei vários prêmios com eles, que começaram como um grupo ativista chamado Espaço do Povo. E a gente fez várias peças que tinham cenários lindíssimos, que eram engrenagens, que tinham projeção de cinema, com projeção de Super-8. Eu já fazia aquilo que se chamou depois de multimídia. Mas o teatro sempre foi multimídia. O que é do teatro mesmo? Tem a declamação que não é dele. Tem a música. As artes plásticas. A arquitetura.
A paixão pela imagem, pelo desenho, foi mais forte do que o teatro?
Na hora em que eu tive de optar em fazer faculdade, em 1973, eu fiz artes plásticas, não foi teatro. No primeiro dia em que entrei na FAAP também entrei como estagiário de direção de arte em propaganda. Um mês depois eu estava contratado. Um mês depois o professor foi ensinar fotografia e eu já dirigia fotógrafos. A parte técnica eu aprendi ao vivo e a cores. Mas a parte toda ligada à estética, à história da arte e à filosofia valeu muito. Meu professor no primeiro ano foi (o filósofo) Villen Flusser. Ele dava aula em cinco línguas.
E como deu o estalo para criar a Videocriatura?
A Videocriatura nasceu do meu caminho na imagem. Do desenho que migrou para a fotografia, para o cinema e para o vídeo. Fui seguindo o caminho da imagem, primeiro, desenhada, depois, representada, em movimento até chegar à imagem viva. Eu era apaixonado pelo teatro e pela imagem em movimento. Resolvi cruzar os dois. Fazer um Frankenstein.
Não existia nada igual à Videocriatura? Ela era inédita?
Tomei um susto. Porque eu achava impossível. Ninguém se lembrava que tinha o Brasil. Ninguém acreditava no Brasil. Quando eu criei isso, eu pensei em estudar quem é que fazia isso no mundo. Fui procurar e não achei. Fiquei assustado, quis parar de fazer.
Por causa da responsabilidade?
Sabe o que é ter um filho louro no Afeganistão? O primeiro comboio que passa você pede para levá-lo para a Alemanha. Eu quis dar o meu trabalho de presente para alguém que já desenvolvia algo parecido, em um país que aceitasse o trabalho eletrônico, multimídia. Era o começo da década de 80. Quando eu fiz uma Videocriatura, a reação foi de choque. O pessoal do teatro ficou assustado. O pessoal das artes plásticas ficou encantado.
O pessoal do teatro ficou assustado porque viu a Videocriatura como uma substituição do trabalho do ator?
O teatro era muito xiita com coisas eletrônicas. Morria de medo do cinema, de coisas que traziam entretenimento. Algo como “não me traga para o palco algo que chame mais atenção do que o ator”.
Parece não existir limites para as Videocriaturas. Elas podem tomar todo tipo de espaço e corpo.
Na verdade, a gente vai viver esse sistema híbrido logo, logo. Atualmente, estou estudando trans-humanismo, ciborgues. Eu já sou meio ciborgue, porque eu operei a minha vista. Meus dois olhos são de plástico. Uso lentes de plástico intraoculares. Vai acabar o conceito de deficiente. Um cara com prótese vai ser normal, legal. Vai ter gente que vai querer colocar uma prótese, um braço a mais. Eu dou aula de transformação corporal porque está sendo demanda.
Temas ligados à body art, suspensão, escarificação?
Sim, tiveram alguns artistas que fizeram suspensão em casa. Aí eu aprendi que não é uma coisa de freak. Que é tudo esterilizado, com luvinhas. Foi o (performer de Campinas - SP) Filipe Espíndola que fez em casa. O Filip conheceu a (também performer) Sara Panamby lá em casa. Ela foi minha aluna (no curso de graduação Comunicação das Artes do Corpo, da PUC São Paulo).
A primeira Videocriatura foi feita em que ano?
Foi em 1981. No começo da década de 80 eu a estava criando em meu laboratório. Coisa de Franskstein. Em cima da minha mesa, em meu quarto, eu estava montando a minha primeira Videocriatura. Aí, eu fui conhecer um gênio chamado Hans -Joachim Koellreuter. Ele é o pai de tudo. Ele levou a música ocidental para a Índia. Depois, voltou à Índia para tirar a música ocidental porque a indiana era melhor. Ele conheceu o meu trabalho em videoarte e me convidou para ir a Campos do Jordão fazer um curso de composição do século 20 com ele. Falei para ele que não manjava nada de música. Ele falou para mim que eu ia tocar vídeo. Quando preenchi minha ficha de inscrição, na parte do instrumento eu escrevi “vídeo” (ri). Ele ensinou partitura planimétrica, e nós tocamos numa que criamos para o espetáculo dirigido por ele. Eu ganhei da TV Cultura um pequeno estúdio, com televisão e videocassete para trabalhar. Eu levei a minha câmera. No final das contas, Koellreuter estava interessado em descobrir a linguagem abstrata da videoarte para ver se tinha alguma ligação com a música contemporânea. A gente montou um trabalho chamado “Nova-Mente”, com o Koellreuter de maestro de um ensemble e eu tocando vídeo, uma linguagem que não é sonora. Eu já era VJ quando nem existia esse nome. Instalei cinco monitores de TV de 17 polegadas na boca de cena, ligados a dois videocassetes, cada um deles com imagens pré-gravadas. Era abstracionismo criado eletronicamente. Ecos de vídeo.
Foi nesse contexto que você apresentou sua Videocriatura ao mundo?
Eu tinha largado a Videocriatura em casa quando fui para Campos do Jordão. Lá, eu contei o que estava fazendo uma máscara feita de televisão e disseram para eu levar para o concerto. Liguei para minha cunhada e pedi a ela para pegar tudo o que tinha em cima da mesa do meu quarto. Terminei a minha primeira Videocriatura em Campos do Jordão, amarrando com barbante, arame. Arrematei tudo com um pano preto e vesti a máscara. Apresentei-a no espetáculo “Novamente”. Tinha um momento em que eu largava os vídeos e vestia a Videocriatura. A cara era a minha, que eu tinha gravado falando um discurso bestialógico em homenagem ao (Paulo) Maluf, que era governador de São Paulo naquela época e estava sentado na plateia. Era eu o imitando. Hoje em dia, nem seria discurso bestialógico, seria um discurso político. Enquanto eu estava no palco como a Videocriatura, o pessoal da dança entrava no meio da plateia, se arrastando e dizendo “é mentira” no ouvido das pessoas. Até hoje não sei o que falaram no ouvido do Maluf (ri).
Logo depois você teve uma apresentação em outro lugar, que foi na Galeria São Paulo.
Lá eu preparei uma coletânea de textos sérios. Peguei um ator, o Osmar di Pieri, excelente cara que sumiu... Alô Osmar! Se estiver lendo isso me liga! Ele é um ator tradicional, generoso. Foi para o público de artes plásticas, na abertura de uma exposição chamada “Contemporâneos Brasileiros”, e tinha o Zé Celso (Martinez Corrêa, do Teatro Oficina Uzyna Uzona) participando de um debate. A dona da galeria, Regina Boni, era maluquinha. Eu não estou no programa porque fiz uma performance selvagem. Não está em lugar nenhum, só tem o vídeo provando que eu fiz. Juntei todas as pesquisas até aquela época. Eu fazia pesquisa todo dia. Durante um bom tempo eu fiz Videocriaturas com imagens pré-gravadas, só mais tarde comecei a fazer ao vivo.
Você chegou a afirmar que a Videocriatura amplia os recursos expressivos do ator?
Hoje eu a vejo como uma ferramenta para você ser livre. Virou uma possibilidade de fazer qualquer coisa. Não somente em arte. Como ele é um ser híbrido. Pode ser um bom ator, pode vender carro, pode ser ancora de talk show. Ele é uma galinha de quatro pernas. Sempre alguém vai pagar para assistir. A Videocriatura chama atenção.
Existe algum projeto que você deseja muito fazer?
Tenho uma gaveta cheia de projetos. Não tenho apoio. Sou do tempo em que projeto era do artista. Contratar alguém para escrever e inscrever projeto precisa ter dinheiro. As leis de fomento obrigam você a ser uma empresa, não um artista.
É verdade que você anda de mal do teatro, por quê?
Arte é provocação. E a relação do teatro com a performance é a de um pai rico com o filho adolescente. Algo como “meu filho faz a coisa direito, porque se não eu corto a mesada”. Por mais que eu ame o teatro, descobri nele um lado típico de um pai da família tradicional. E a performance é aquele filho que se tornou a ovelha negra. Começa tentando fazer uma coisa que se descola do teatro, e quando consegue, e dá certo, o teatro vem e o engole novamente. O teatro tem a tendência de pegar a borboleta e cristalizá-la. Antigamente, se falava que a dança não era o dançarino, era o que ficava no ar, era o gesto. Tem alguma coisa no teatro que está muito ligada à repetição e que tem a ver também com a industrialização do gesto expressivo livre.
(Fotos de Carlota Cafiero)
Instante – Experiência / Acontecimento em Arte e Tecnologia no SESC - Campinas, São Paulo