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setembro 15, 2011
Arte, especificidade e globalização - mesa relatada por Raisa Christina
Encontro Sul-americano – Inventando o lugar no CCBNB, Fortaleza
Arte, especificidade e globalização
Relato realizado por Raisa Christina em 12 de agosto de 2011
4ª Mesa Encontro Sul-americano – Inventando o lugar
A última mesa do encontro trazia como pauta questões acerca da produção do artista que se encontra em trânsito frequente no contexto globalizado e da relação do mesmo com os lugares por onde passa. O artista e educador cearense David da Paz, encarregado da mediação, apresentou brevemente o tema da mesa e as três convidadas: Giseli Vasconcellos (Brasil), María Isabel Rueda (Colômbia) e Elisita Balbontin (Chile).
Giseli Vasconcellos
A artista e pesquisadora brasileira estuda a vida nômade e coletiva em Belém do Pará, por meio da Rede [aparelho]-: e do Coletivo Puraquê. Atualmente mora em Massachussets, EUA, e dirige o projeto Networked Hacklab na região norte do Brasil, interligando arte, tecnologia e ativismo. Das integrantes da mesa, ela foi a primeira a ter a palavra e, de início, desculpou-se por não ter estado presente durante todo o encontro, o que se deu pelo seu grande envolvimento no Networked Hacklab, um projeto de laboratório experimental realizado em comunidades amazônicas do Pará.
O Hacklab1 trata-se de um programa patrocinado pela Vivo Lab que acontece em algumas cidades do país, sempre associado a leis de incentivo estaduais, e busca criar laboratórios de invenção artística, dentro do eixo arte e tecnologia. Esses laboratórios costumavam se dar, de forma geral, em curtos workshops ministrados por artistas programadores, mas Giseli resolveu estudar melhor as diretrizes do projeto para refazer o seu formato.
Para ela, a questão inicial era como adaptar esse programa (cujo próprio nome em inglês é de difícil pronúncia) para a realidade local da Amazônia paraense. Foi necessário, antes de tudo, repensar o termo “hack”, desvencilhando-o de um conceito negativo e entendendo-o como “reconfiguração ou re-programação não autorizada/ correção rápida, inteligente de um problema, um remendo/ modificação de um dispositivo para dar ao usuário o acesso a recursos indisponíveis”.
Giseli vai, assim, buscando um sentido mais amplo para o projeto. Ela, então, resolve propor a formação de grupos de artistas locais e estrangeiros para uma verdadeira imersão na vida amazônica. Lá, eles passariam a conviver por algum tempo, recolhendo impressões, dados e perspectivas do lugar, a fim de desenvolverem, por meio da produção de conteúdo digital em plataformas livres, cartografias políticas e poéticas da região.
O sentido de imergir nas comunidades e estar com as pessoas é também a curiosidade de descobrir qual o imaginário sobre a Amazônia vista de longe e vista de perto, de fora e de dentro. A vontade de fugir de modelos que só reafirmassem o lugar onde a arte já se instala nos esquemas do capitalismo financeiro e o interesse pelo uso mais criativo e crítico das tecnologias digitais, em áreas oprimidas por potências financeiras e informacionais, são duas questões que, segundo Giseli, apresentam-se enquanto balizas para a implementação do projeto.
Para essas questões, Giseli encontra sempre a mesma resposta: “reverter códigos = quebra de protocolos”. Em outras palavras, a idéia de “reverter códigos” associa-se ao conceito de open source ou software livre – “códigos abertos que você utiliza e lê de forma conceitual para criar seus próprios protocolos” – e a idéia de “quebra de protocolos” já se insere facilmente numa lógica hacker. A partir daí, para ela, o projeto poderia fazer todo o sentido.
Após pesquisar e identificar comunidades com as quais essas iniciativas mais poderiam dialogar, o próximo passo, nas palavras de Giseli, é “futurizar afluentes”. Ela considera a região amazônica por um viés de afluências, com suas linhas hídricas a se espalharem e entrecruzarem-se por culturas e situações diversas, muitas das quais não se encontram tão evidentes à beira dos rios, e sim dentro das cidades, talvez um tanto mais isoladas, um tanto mais invisíveis. A expressão “futurizar”, no seu particular vocabulário, significa ir além, pensar um futuro juntos.
Soma-se a isso a necessidade da criação de redes locais (LAN), pois, em boa parte da Amazônia, não há conectividade. Tradicionalmente, a comunicação na região se dava por meio de sistemas radiofônicos, o que foi sendo extinto nos últimos anos, com a repressão ao funcionamento das rádios comunitárias. O norte, salienta Giseli, hoje paga dez vezes mais que o centro-sul e o sudeste para estar conectado.
Por fim, o projeto visa ainda à elaboração de uma cartografia crítica da Amazônia, cartografia no sentido de desvelar situações políticas dentro de mapas não oficiais, como a situação do Pará enquanto uma das principais rotas do tráfico de pessoas, juntamente com o Caribe.
Uma crítica constante no discurso da artista se referia aos vícios criados pelas leis de incentivo, fazendo com que certas empresas se utilizem de isenções fiscais para apoiarem projetos apenas no intuito de se publicizarem. No debate, ela explicou que, por conta disso, os projetos apoiados parecem ser valorizados muito mais pelo seu poder de marketing e espetáculo, do que pelo seu caráter criativo e experimental. Por isso, o formato do laboratório experimental proposto por Giseli muitas vezes assume uma estética do feio, numa tentativa de escapar a modelos mais “glamourizados” que predominam no capitalismo cultural.
Durante a convivência dos grupos na região, eles puderam perceber o quanto o imaginário de cada um em torno daquele lugar havia sido contaminado pela mídia, inclusive o imaginário dos nativos. Como forma de organizar os diferentes pontos de vista para a criação de mapas coletivos – que seriam apresentados posteriormente -, os grupos elencaram algumas palavras-chave, tais como: redes colaborativas, cultura hacker, licenças livres, reciclagem, América Latina, bordas e fronteiras da Amazônia etc.
Em âmbito geral, a experiência do Hacklab tem possibilitado uma intensa rede de troca de materiais em texto e audiovisual, assim como de diferentes métodos cartográficos e, consequentemente, de formas criativas de discutir questões políticas e afetivas da região. De acordo com Giseli, a iniciativa tem dado muito certo.
Os entrechoques culturais provocados nas experiências do Hacklab, envolvendo artistas estrangeiros e locais, tornaram visível o modo pelo qual a Amazônia é vista em outros países e também como algumas comunidades da região curiosamente vêem a si mesmas. A imagem que essas têm de si às vezes se encontra bastante marcada pelo que é veiculado na mídia e, de certa forma, não destoa tanto da idéia que o estrangeiro possui do local. Ações de intercâmbio como as viabilizadas pelo Hacklab incentivariam uma autoconsciência social e cultural mais crítica por parte dessas comunidades? Como a construção de mapeamentos por grupos de estrangeiros e nativos ajudaria nesse sentido?
María Isabel Rueda
A segunda componente da mesa vive e trabalha em Bogotá, Colômbia. Tem formação em publicidade e artes visuais. É artista, professora, editora da revista independente Tropical Goth e co-curadora do espaço La Residencia e do projeto La Parte Maldita – Posesión de Espacios.
Maria Isabel deixa claro que a vida social será um assunto recorrente em sua fala, uma vez que sua produção artística nunca se desligou de desejos simples, como fazer amigos e divertir-se. A artista nos apresenta seus primeiros experimentos – segundo ela, um pouco ingênuos – que consistiam em retratar, com uma Polaroid que ela ganhara de presente, pessoas na universidade com quem ela simpatizava ou que gostaria de conhecer. Sua professora de fotografia lhe estimulava a usar outras câmeras e a seguir com aquele hábito, que já se tornava quase obsessivo. Assim, Isabel passou a observar os transeuntes pelas ruas de Bogotá e a fotografar aqueles que se produziam muito e demonstravam um cuidado todo especial com a aparência.
Para o trabalho de conclusão de curso na universidade, Isabel desenvolveu uma pesquisa intitulada “Vampiros en la Sabana”2 , que se tratava de um ensaio fotográfico, em preto e branco, de jovens mulheres pálidas, com trajes longos e escuros, numa paisagem predominantemente natural, onde vez por outra surgiam detalhes de arquiteturas urbanas. O título da pesquisa faz referência ao filme cubano “Vampiros en la Havana” (1985), no qual vampiros sul-americanos são apresentados como imunes à luz do sol, o que modifica uma série de comportamentos normalmente associados a essa figura fantástica. O lugar escolhido por Isabel para fazer as fotografias tinha a ver com o imaginário do grupo de meninas góticas, que diziam se identificar com paisagens nórdicas, de países como a Dinamarca ou a Noruega.
A temática dos vampiros não mais lhe abandonaria. Mais tarde, sua obra retomaria o estudo relacionado a esses seres lendários, buscando explorar algumas características atribuídas a eles enquanto grandes metáforas, como o fato de não se refletirem nos espelhos, de serem imortais e de alimentarem-se através da sucção.
Numa viagem à Cidade do México, a convite de um amigo para trabalhar na criação de cartazes, ela conheceu a cena underground local e começou a ser vista como uma figura exótica: “a colombiana gótica que gosta de vampiros”. Logo foi apresentada a vários personagens góticos da cidade e a outros artistas interessados nessa estética, o que a fez ganhar uma certa popularidade nesse meio. Até mesmo conta, bem-humorada, que programas de rádio, pessoas ligadas a seitas satânicas e curiosos em geral passaram a entrar em contato com ela, levando-a a perceber que talvez precisasse ir mais a fundo naquele universo para compreendê-lo melhor.
É importante mencionar, dentre outros projetos de Isabel, a edição da revista Tropical Goth (referência ao gótico tropical), cuja linguagem remete ao fanzine e cujo conteúdo é o mesmo de sua pesquisa nos últimos tempos: a reinvenção da estética gótica e do imaginário em torno do vampiro pelas tribos de grandes centros urbanos na América Latina, assim como o diálogo dessas tribos com o rock, o heavy metal e o cinema de horror.
A artista também se dedicou à criação do espaço El Bodegón – Arte Contemporáneo y Vida Social, em Bogotá. Esse subtítulo é bastante significativo na trajetória de Isabel e no pensamento em relação à sua obra, que, em seu próprio discurso, é constantemente vinculada ao desejo de se aproximar das pessoas e de elaborar estratégias para reuni-las e dinamizar a cena cultural na capital colombiana, por meio de exposições, apresentações de bandas de rock, cineclubes etc.
No debate, o público evidenciou questões de identidade e imaginário na pesquisa de Isabel. Tanto ao unir elementos de culturas tropicais e nórdicas – como coqueiros, araras, lobos e veados – para compor, em sua produção gráfica, cenários cheios de detalhe de arquiteturas pontiagudas e mulheres sensuais, quanto ao fotografar jovens de um grupo peculiar em Bogotá e alterar a própria imagem da cidade, numa tentativa de trazê-la mais perto da idéia que esses jovens têm do lugar, a artista sugere uma reflexão acerca do modo pelo qual culturas locais assimilam produções simbólicas de outras culturas e recriam suas identidades visuais, num processo extremamente rico de sincretismo.
Elisita Balbontin
A artista visual e musicista, componente da banda Makaroni, vive em Santiago, Chile. Sua obra caminha por entre abstração geométrica, sons e movimento. Já expôs em vários países e viaja frequentemente em turnês com a banda. Concebeu a oficina de serigrafia Impresiones Clara, em Santiago.
Diante da platéia, uma mão segurava o microfone e a outra, um caderninho. Blusa e meias cor de rosa. Tênis, short jeans e cinto azul. Elisita não dá a mínima para uma postura mais convencional, até então “obedecida” pelos participantes da mesa-redonda, e dispara feito uma menina, percorrendo o palco em ziguezagues e falando inúmeros fragmentos em tom de poesia. Sua aparição/performance mudou completamente a dinâmica da mesa e logo entendíamos o quanto o movimento, o ritmo acelerado e o fluxo entrecortado de pensamento eram intrínsecos à sua obra e à sua compreensão de mundo.
Como se narrasse em versos livres, ela falou do desejo de estar em todos os lugares e de, ao mesmo tempo, constatar que talvez não haja lugar algum. Falou em mudança incessante, explosão, linha do tempo e presente. Música andino-tropical-eletro, amigos e psicodelia. Luz e cor, bicicletas e máquinas, eletricidade, portabilidade e maletas. Festas. O mundo depois do Google Earth. Quais os endereços possíveis? Como se encontrar?
Ao longo da performance de Elisita, víamos diversas imagens de intervenções da artista mundo afora, registros de oficinas de serigrafia e shows da banda. Vez por outra, ela descobria melodias e produzia ruídos em meio a seus versos picotados. De repente, o microfone era brinquedo.
Questionada sobre o que a levou a ter essa vida meio nômade e sobre pertencimento, Elisita contou que seus pais trabalhavam numa empresa aérea do Chile, o que, desde cedo, fez com que ela encarasse com naturalidade um cotidiano de trânsitos. Sendo assim, seu sentimento de pertencimento é mais em relação ao mundo e não tanto a lugar específico. Para ela, optar por seguir viajando é também optar por estar sempre conhecendo pessoas, fazendo amigos relâmpagos e desapegando-se de muitas coisas. A artista mantém o blog: http://elisitapunto.blogspot.com/.
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Levando em consideração a fala das participantes da mesa, pode-se indagar a respeito de como a arte contemporânea vem reformulando as concepções de identidade e pertencimento – sem ligá-las de imediato a um lugar e uma cultura específicos -, em meio ao fluxo de informações do atual contexto globalizado. De acordo com Moacir dos Anjos3 , “é justamente por provocar respostas e posicionamentos locais às suas tendências homogeneizantes – induzindo, assim, ao reconhecimento ampliado da natureza contingente e provisória das construções identitárias – que a globalização assume, paradoxalmente, um caráter desmistificador e crítico”.
As interconexões culturais fortemente presentes nos discursos de Giseli, Isabel e Elisita parecem estimular a produção de imaginário e narrativas. No caso do Hacklab, o embate de olhares entre artistas nativos e estrangeiros traz outras perspectivas para se considerar a situação da região norte do país. Esse embate também dá a ver nuances do cotidiano local que já não eram percebidas por aqueles que tinham uma relação de familiaridade com a Amazônia, inspirando o desenho de mapas incomuns, de caráter poético e social. Já na obra de Isabel, a ressignificação de símbolos oriundos de outras culturas, por meio da relação desses com elementos do contexto local, sem dúvida favorece uma pluralidade de narrativas, que se tornam mais complexas ao apresentar novos dados a lendas e mitos alheios. Por último, Elisita mostra que o contato com o outro pode agir como um forte impulso criativo. As constantes viagens que tem feito a diversos países lhe acarretam um aglomerado de referências que, à medida que são filtradas, dão novo fôlego a seu repertório e servem de material que é incorporado à sua obra.
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Página criada pela Vivo Lab para apresentação do programa: http://www.hacklab.art.br/
Imagens disponíveis na página da artista, no flickr
No livro de sua autoria “Local/Global: Arte em trânsito” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005).