|
agosto 8, 2011
Sobre a louca da razão por Gilberto Vieira
Sobre a louca da razão
Gilberto Vieira
Especial para o Canal Contemporâneo
René Descartes chegou ao Brasil inundado de seu pensamento cartesiano sobre a razão, a condição humana, o funcionamento das coisas do mundo. Vestido da roupa batava que lhe garantia poder e estranhamento europeu, desvendou o que pode com olhos de peixe. Nas singelas observações sobre as coisas do trópico, ele pirou.
Esse René Descartes, de Paulo Leminski (1944-1989), é o tema da nova obra cinematográfica de Cao Guimarães (1965) - Ex isto. Pouco interessado no cinema hermético (a sala escura, a película), Cao, ainda assim, aceitou a encomenda do Itaú Cultural e partiu em busca do que pudesse dizer sobre o emblemático poeta brasileiro que viveu e criou na efervescência nacional dos anos 1970. Leu com a calma e o cuidado necessários, O Catatau (1975). Poema-prosa que afronta a razão pura, a soberania e imponência filosófica do branco europeu, a obra se presta a divagar sobre a possível visita de René Descartes (1596-1650), o pai da filosofia moderna, ao Brasil.
O resultado de Cao é um emaranhado linear de descobertas e impossibilidades das teorias desse Descartes. No primeiro grande momento (ilhado no rio Araguari, no Amapá), o herói se presta a desvendar a imensidão natural dos trópicos, o calor, o suor, a mata. Já no contato com a terra, entre lentes de lunetas e closes de fenômenos naturais e bizarros da natureza, Descartes vê desmantelar o pensamento.
Quando chega ao Recife contemporâneo, na feira ou na praça do centro, entre animais sendo abatidos, sujeira, gritos, corpos seminus, música, dança, ele se prostra diante de manequins de loja que talvez lhe parecessem mais afins. Esse é o lugar do desvario. E como um desesperado (ainda contido sob seu véu racional) Descartes ensaia um regueton junto de uma dançarina animada. Sinto o cheiro do mercado, do peixe, dos corpos. Só pensando, não dá pra chegar lá.
Sem acertismos cinematográficos, Cao faz Descates pousar-planar na Brasília-moderna-racional. Nem assim seu personagem atônito e observador é capaz de fazer qualquer aproximação com seus estudos analíticos, seu sistema de coordenadas. Estourada a luz do concreto brasiliense diante de seus olhos, Descartes cega. Ver é uma fábula.
Como quem se despe da razão, o anti-empirista aporta, por fim, nu – como foi posto no mundo por um deus-mentira - numa praia paradisíaca. É o momento ápice do enlouquecimento da razão.
Como admitir tal desvario no Brasil pós-tropicalista, quando as bases do pensamento contemporâneo são tão diversas? Se só resta o declínio ao ocidente, me pergunto onde vamos parar nesse momento da nova iconoclastia - onde os ícones são tão venerados, tão descartáveis e tão renegados. Ao mesmo tempo, agora, posso juntar o século XVI ao XX numa anti-narrativa visual do mundo digital. Uma pergunta: Quem pôs a luz no cu do vagalume??
* Os trechos em itálico são extratos de Catatau, de Paulo Leminski.
Serviço
ICONOCLÁSSICOS
Ex Isto
Paulo Leminski por Cao Guimarães 86 min., 2010.
Em cartaz no Espaço Unibanco de 12 de agosto a 8 de setembro em Curitiba, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador e de 19 de agosto a 8 de setembro em Santos e Fortaleza.
Belo texto! Parabéns!!
Posted by: monica tachotte at agosto 9, 2011 6:35 PM