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Um tempo latente
Carolina Soares*
Deitar, levar uma xícara à boca, sentar, pegar uma caneta, andar, todas essas são ações voluntárias cotidianas. São movimentos regidos por uma intenção e por uma economia de forças, a partir das quais nosso corpo é submetido a desempenhar atividades quaisquer. São atos regulados por um dispêndio mínimo de esforço e que, de tão naturalizados, carregam a condição de trazer neles mesmos o seu fim. Eles parecem aguardar por circunstâncias inesperadas que lhes permitam assumir um estado outro, de excitação ou de cansaço, que venham a denunciar os limites, as desordens às quais também estão sujeitos.
Ainda sob uma suposta condição de normalidade, cada gesto parece determinado por uma duração a priori. Nem mais, nem menos. Nada se impõe, a não ser quando diante da vontade consciente de subverter essa mesma lógica, reduzindo ou prolongando a extensão dos intervalos entre um movimento e outro. Colocar-se imóvel, por exemplo, leva a indagar o quanto é capaz o corpo de suportar na permanência ou qual sensação vem do desejo de escapar da pressa ou de qualquer outra situação que resulte de um tempo em compressão.
Quando a bailarina e coreógrafa Clarice Lima, na performance “Árvores”, de 2010, posiciona seu corpo de modo ereto, estático, mas invertido, a artista não se detém num simples empenho pelo ornamento. Seu interesse vai além, propondo um cenário em que, embora regido pela fixação e congelamento dos movimentos, entende sobre a impossibilidade de ser durável. Pois, mesmo orientado pelo desejo de estabilidade, em algum momento o corpo se rende à exaustão de seus músculos, desestabiliza-se e cai. Afinal, tentar prolongar um estado de permanência é também fazer menção a uma estabilidade que reside como metáfora de uma intenção frustrada diante dos limites das faculdades humana.
No trabalho “Saia”, de 2009, no entanto, o estado de permanência é alcançado. Para isso, as artistas Clarice Lima e Patrícia Araujo tiram proveito da fotografia, um meio cuja natureza é a de tudo fixar. Não, não se trata de um mero registro de uma performance. Aquela ação agora é realizada para, junto ao cenário escolhido, compor uma imagem em que o corpo não mais dependa de seus esforços físicos para se sustentar. A condição assumida assemelha-se à de uma escultura fotográfica, se é possível assim definir. Nela, faz-se valer o estatuto de imobilidade, de temporalidade estendida em que os gestos permanecem, ao longo do tempo e do espaço, os mesmos. O tempo das experiências, das ações no mundo é convertido a obedecer regras que não mais dizem respeito àquelas orientadas por um tempo real.
Na observação das imagens, é inevitável não levar em consideração o fato de elas serem apresentadas em conjunto. Esse dado torna-se relevante, pois, colocá-las em sequência, certo movimento é atribuído àquela ação, embora estática. As imagens juntas parecem remontar uma sucessão teatral com suas mudanças de cenários, de figurinos para que o corpo invertido encene algo que traria a ideia de uma duração em si. Mas, diante dessa impossibilidade, a fotografia intervém de modo decisivo a eliminar as chances de permanência de um tempo em curso.
Nessa escultura fotográfica, o corpo parece destituído de peso, aderindo ao seu entorno de modo a misturar-se à profusão de cores. A estampa das saias sustenta a ação e assume papel importante junto ao azul do céu, o verde das árvores etc. Em meio a todo esse colorido, é difícil não se lembrar dos versos de Jorge Ben Jor [Moro num país tropical/ abençoado por Deus/ E bonito por natureza]. Afinal, é também desse cenário que o trabalho se faz.
* Carolina Soares: Crítica e historiadora da arte. Sócia do Ateliê397, um espaço de arte independente em São Paulo. Doutoranda em Historia da Arte pela ECA/USP.
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