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dezembro 1, 2010
Pontos de Cultura para além das Indústrias Criativas por Barbara Szaniecki e Gerardo Silva
Texto de Barbara Szaniecki e Gerardo Silva
Neste momento em que o Rio de Janeiro se prepara para acolher três grandes eventos – Rio+20 em 2012, Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016 – a unanimidade em torno dos conceitos de “Indústrias Criativas” e de “Cidade Criativa” tem nos inquietado. O curioso é que esses conceitos agradam da esquerda à direita, passando por aqueles que defendem uma alternativa ecológica e que paradoxalmente descobrem, no cinza da lógica industrial, um habitat natural. É difícil negar o charme das Indústrias Criativas. Em viagem de turismo, quem não gosta de ver uma exposição de arte e, em seguida, comprar o catálogo das obras ou um objeto de design na lojinha do museu? Por Indústrias Criativas, entende-se um conjunto de atividades econômicas relacionadas à geração de conhecimento e de informação tais como: publicidade, arquitetura, artes e antiquários, artesanato, design, moda, cinema e vídeo, música, artes performáticas, edição, software e serviços de informática, tevê e rádio. Esse setor heterogêneo mantém importantes relações econômicas com os setores de turismo, museus e galerias, patrimônio e esporte. Parece que o destino do Rio de Janeiro está selado com o anúncio da construção de pelo menos três belos museus: o Museu da Imagem e do Som na orla de Copacabana com projeto dos arquitetos nova-iorquinos Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio; o Museu de Arte do Rio na Praça Mauá com intervenção dos arquitetos cariocas Paulo Jacobsen e Thiago Bernardes em dois prédios já existentes; e o Museu do Amanhã no Píer Mauá (exatamente onde deveria ter sido construído o Guggenheim anos atrás) com projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Esse destino, que nada tem de divino ou de natural, não foi democraticamente discutido. Em tempos de capitalismo pós-industrial, o modelo das Indústrias Criativas não apenas soa anacrônico como aponta uma contradição: enquanto o termo “criativas” sugere a substituição da repetição industrial pela invenção sobre a qual se baseia a produção pós-industrial, o termo “indústrias” parecer insistir na redução do imprevisível da criação ao previsível de uma linha de montagem. E essa linha de montagem não se limita ao chão de fábrica mas se estende à toda a metrópole, integrando produção e consumo. A tensão interna ao termo “Indústrias Criativas” aponta a esquizofrenia do capitalismo contemporâneo e a esquizofrenia dos nossos políticos (dos “vermelhos” aos “azuis” passando pelos “verdes”). Como contraponto a esse modelo, emerge a experiência dos Pontos de Cultura, cuja importância cresce apesar de sua invisibilidade na mídia. Este aparente paradoxo é um dos temas que pretendemos discutir aqui.
As Indústrias Criativas como modelo desenvolvimentista da sustentabilidade
Observemos então a linha de montagem estendida por toda a cidade criativa. Dos museus apresentados, dois fazem parte de um projeto da Prefeitura de “revitalização” da zona portuária, qual seja, o Porto Maravilha. Aqui, “revitalização” significa “re-industrialização criativa”, isto é por meio de museus, das áreas que foram des-industrializadas nas últimas décadas. A linha de montagem da cidade criativa de hoje coincide perfeitamente com a linha de montagem da cidade industrial de outrora. Nesse sentido, afirmamos que esse projeto segue um modelo desenvolvimentista do qual as “Indústrias Criativas” seriam as novas locomotivas. Notemos também que enquanto o marco cultural da cidade industrial foi o Museu de Arte Moderna que abrigou a Escola Superior de Desenho Industrial com um programa funcionalista hoje criticado mas que fazia sentido naquele momento em que indústria rimava com democracia, o marco criativo da cidade pós-industrial pretende ser o Museu de Arte do Rio que deve abrigar a Escolha do Olhar cujo programa é desconhecido até o momento e o Museu do Amanhã que se apresenta vagamente como museu da sustentabilidade. A construção dos três museus tem sido noticiada com entusiasmo pelo jornal O GLOBO e esse entusiasmo não é gratuito. O Museu da Imagem e do Som com orçamento previsto em R$ 70 milhões, o Museu de Arte do Rio com orçamento previsto em R$ 43 milhões e o Museu do Amanhã com orçamento previsto em R$ 130 milhões são anunciados como “parcerias” da Prefeitura da Cidade ou do Governo do Estado do Rio de Janeiro com a Fundação Roberto Marinho. Ora, seria interessante entender quais são os termos dessa “parceria”, ou seja, entender se trata-se de investimentos privados por parte da Fundação ou se trata-se de captação de verba pública por meio de renúncia fiscal.
Os Pontos de Cultura como laboratório ecológico da polinização
Paralelamente a esse modelo desenvolvimentista, cresceu nos últimos anos o que se poderia chamar de “laboratório ecológico”. Evidentemente, o ecológico ao qual nos referimos não é uma maquiagem, mas o ecológico proposto por Félix Guattari que mencionava três ecologias: social, mental e ambiental. Para não confundir com uma ecologia de fachada, adotamos o termo “laboratório cultural”. Os Pontos de Cultura, política pública do Governo Federal são laboratórios culturais. Os investimentos são muito menores se comparado aos dos museus e alimentam inúmeras iniciativas no Estado e na cidade do Rio de Janeiro. Suas modalidades culturais (“linguagens”) se assemelham muito às desenvolvidas pelas “Indústrias Criativas” (http://www.mapasdarede.org.br/mapa/). São elas: artes performativas, artes plásticas, artesanato, audiovisual, dança, folclore, fotografia, gastronomia, jornalismo, literatura, memória, musica, rádio e televisão. Somente nos arredores da zona portuária existe uma dezena de iniciativas. Temos então modalidades muito semelhantes e investimentos muito menores. Contudo, os Pontos de Cultura que são assumidamente financiados com base em editais públicos são considerados insustentáveis, enquanto as Indústrias Criativas que são discretamente financiadas com leis de renúncia fiscal (pelo menos em parte) são tidas como sustentáveis. No primeiro caso a presença do Estado é evidenciada, enquanto no segundo ela é camuflada. Trata-se de fato de duas formas diferenciadas de ação do Estado, sendo que, no segundo caso, a verba pública é ainda maior do que no primeiro.
Voltemos aos Pontos de Cultura por meio de um de seus principais idealizadores, Célio Turino, que escreveu recentemente o livro Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima : “Ponto de cultura é um conceito de política pública. São organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não é para as pessoas e sim das pessoas; uma organização da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. O Ponto de Cultura não é um equipamento cultural do governo nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pessoas e grupos.Ponto de cultura é cultura em processo, desenvolvida com autonomia e protagonismo social.” Mais adiante, Turino afirma que “essa interação (entre grupos culturais e Estado) [...] exercita um novo modelo de Estado, diferentes dos até então conhecidos. Nos padrões conhecidos, temos de optar por formas pesadas de Estado, de caráter intervencionista e burocrático, ou então o Estado mínimo, com sensibilidade igualmente mínima às necessidades sociais.” Entre o Estado máximo e o Estado mínimo, Turino propõe “um Estado de ‘novo tipo’, que compartilha poder com novos sujeitos sociais, ouve quem nunca foi ouvido, conversa com quem nunca conversou, vê os invisíveis.”
Nesse ponto, embora tenhamos introduzido a questão do Estado para mostrar que ele está tão ou mais presente no modelo das Indústrias Criativas do que no laboratório dos Pontos de Cultura, e embora julguemos importante a construção do Estado de baixo para cima (proposta que mais se assemelha a uma carnavalização nos termos de Bakhtin), propomos um deslocamento. Mais do que a construção de um Estado Brasileiro de novo tipo ou “de baixo para cima”, a questão que nos interessa é a constituição do comum da e na cultura. Para Antonio Negri “o comum que compartilhamos serve de base para a produção futura, numa relação expansiva em espiral. Isso talvez possa ser mais facilmente entendido em termos da comunicação como produção: só podemos nos comunicar com base em linguagens, símbolos, idéias e relações que compartilhamos e, por sua vez, os resultados de nossa comunicação constituem novas imagens, símbolos, idéias e relações comuns. Hoje essa relação dual entre a produção, a comunicação e o comum é a chave para entender toda atividade social e econômica.” Negri aqui define o comum a partir da comunicação, mas poderia tê-lo feito a partir da cultura. Linguagens, imagens, símbolos, idéias e relações constituem cultura. É esse comum (culturalmente produzido e, por sua vez, culturalmente produtivo) que o capitalismo contemporâneo procura capturar. É nesse sentido que há expropriação do comum.
O conflito e o comum
A esse ponto, nossa questão é: como o modelo das Indústrias Criativas e o laboratório dos Pontos de Cultura pensam e praticam a relação produção, cultura e comum? Embora esses dois caminhos possam se cruzar e eventualmente se complementar, é impossível não demarcar linhas de conflito. Poderíamos supor que o modelo das Indústrias Criativas favorece o trabalho formal enquanto o laboratório dos Pontos de Cultura favorece o trabalho informal. A realidade é diferente: as Indústrias Criativas nem sempre formalizam seus trabalhadores e nem sempre aceitam o recibo de autônomo. Nesses casos, estimulam o fenômeno de CNPJotagem ou compra de nota fiscal por parte de produtores culturais que trabalham na empresa de forma continuada ou de forma intermitente (característica da produção cultural). Por outro lado, políticas como as dos Pontos de Cultura têm fomentado muita discussão pública sobre esse tema. O Movimento Re-cultura, por exemplo, convocou ao debate Estado (Ministério da Cultura entre outros) e sociedade (trabalhadores da cultura e especialistas das áreas fiscal, tributária e trabalhista) afirmando que “milhares de trabalhadores que hoje exercem suas atividades de maneira informal, se optarem pela legalização transformando-se em Empreendedores Individuais, poderão ter acesso a benefícios como: cobertura previdenciária; contratação de funcionário com menor custo; isenção de taxas para registro da empresa; ausência de burocracia; acesso a serviços bancários, inclusive crédito; compra e venda em conjunto; redução da carga tributária; controles muito simplificados; emissão de alvará pela internet; cidadania; benefícios governamentais; assessoria gratuita; apoio técnico do SEBRAE na organização do negócio; possibilidade de crescimento como empreendedor; e segurança jurídica.” Ora, para avançar ainda mais na produção de novos direitos, é preciso entender que o capitalismo contemporâneo não apenas explora a força individual do trabalhador assalariado na empresa, como procura capturar a cooperação em rede de trabalhadores autônomos na metrópole, isto é, a cooperação em rede dos empreendedores individuais. Isso significa que promover o “empreendedorismo individual” é ao mesmo tempo, absolutamente urgente (para dar proteção, criar incentivos, etc), mas absolutamente insuficiente... Ainda mais em tempos em o trabalhador cultural se transformou em paradigma do trabalhador em geral. Ou seja, a flexibilidade do campo da cultura se expandiu em precariedade generalizada. Para apreender o trabalho contemporâneo, Yann Moulier-Boutang propõe a imagem da polinização realizada pelas abelhas. As abelhas não apenas produzem mel, como realizam um trabalho importante de transporte do pólen de flor em flor que permite a produção de novas flores. A diversidade de flores na natureza se deve em parte à polinização. O trabalho da cultura é mais “polinizador” (transformador e agenciador de diferenças) do que “produtor” (conservador e reprodutor de identidades). Talvez as abelhas da Cultura prefiram polinizar de flor em flor (Pontos de Cultura) do que produzir mel para que a colméia (as Indústrias Criativas) venda em potes. Ou os dois, a seu bel prazer e decisão! Enquanto Indústrias Criativas correspondem a um modelo desenvolvimentista que articula produção e consumo, Pontos de Cultura são uma política pública polinizadora que rima produzir com resistir à expropriação do comum.
Comentamos anteriormente que as Indústrias Criativas tem grande visibilidade na grande mídia, enquanto os Pontos de Cultura sofrem a invisibilidade total. Em seu livro, Célio Turino considera que “a grande imprensa ainda não compreendeu essa revolução silenciosa que brota em tantos pontos do Brasil. Vez por outra aparecem notícias destacando o esforço de comunidades pobres fazendo arte, mas são notas desencontradas, que não fazem conexões e não percebem que se trata [...] de um novo movimento social, de transformação e reinterpretação do Brasil. Por não se aprofundarem no processo, (essas notas) tratam casos isolados, ora destacando determinado artista ou personalidade do povo, ora (destacando) a “responsabilidade social” de empresas patrocinadoras, ora (destacando) o esforço de comunidades pobres.” Turino critica muito elegantemente o tratamento da mídia aos Ponto de Cultura. De nossa parte, discordamos apenas da primeira frase do Turino: “A grande imprensa ainda não compreendeu essa revolução silenciosa”. Ao contrário, acreditamos que a grande imprensa e o grande capital compreenderam perfeitamente essa revolução e, por esse motivo mesmo, a silenciam. Eles compreenderam perfeitamente as jazidas comuns a serem exploradas, jazidas imateriais e portanto inesgotáveis. E, nesse momento em que a Cidade do Rio de Janeiro caminha em direção aos três grandes eventos que mencionamos, essa compreensão toma a forma das “parcerias” da Fundação Roberto Marinho com Prefeitura da Cidade e com o Governo de Estado na construção de museus – pedra fundamental das Indústrias Criativas – que capturam das imagens e imaginários baseados em “lugares comuns” cariocas (a cordialidade do povo, o malandro e a mulata, a beleza das praias, o calçadão de Copa, etc) até as imagens e imaginários porvir... É preciso afirmar o comum na e da cultura. É preciso afirmar a polinização da cultura na economia e na vida antes que a caminhada em direção aos grandes eventos se transforme em uma penosa novela Global.
1 http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/01/19/pedra-fundamental-do-novo-museu-da-imagem-do-som-lancada-em-copacabana-915560597.asp
2 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/06/zona-portuaria-do-rio-vai-ganhar-museu-de-arte.html
3 http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1458151-5606,00.html e http://www.portomaravilhario.com.br/oprojeto/
4 TURINO, Célio. Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima. São Paulo : Editora Anita, 2009. PDF disponível em : http://www.celioturino.com.br/
5 Multidão, p. 256/257
6 http://www.recultura.com.br/