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maio 28, 2010

A Utopia como lugar possível; ou, pequeno dicionário de palavras proibidas (no discurso da arte contemporânea) por Ana Luisa Lima

A Utopia como lugar possível; ou, pequeno dicionário de palavras proibidas (no discurso da arte contemporânea) faz parte do Catálogo Convivências #2 - Casa Tomada-SP


“O discurso do 'fim' não significa que 'tudo acabou', mas exorta a uma mudança no discurso, já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos.”

Hans Belting em O fim da história da arte.


O cristianismo e o comunismo morreram , ainda assim, há um ranço que permanece nas bocas contemporâneas toda vez que ousam falar as palavras que um vez comandaram os modos de pensar e agir destes modelos ideológicos. Algumas até as engolem antes de. Porque uma vez ditas, sobejam os embaraçosos pedidos de desculpas. Falharam! (Os modelos, ou – nós – os seguidores destes modelos?) É por isso que já não se pode ceder ao amor, ao engajamento e à utopia.

A necessidade de declarar o fim nem sempre significa deparar-se com o fim de fato. Mas de tentar antecipá-lo numa atitude desesperada por mudança. É menos doído assegurar a mentira do “eu não te amo mais” do que lidar com o amor diariamente desafiado pela relação (aparentemente) fadada ao fracasso. Para sobrevivermos aos amores, nós os chamamos -ex; e aos percalços da história, fica mais bonito falarmos em pós-.

A criação dos pós-, sobretudo nos dias contemporâneos, me pego pensando, mais parece remédio paliativo para controlar a ansiedade coletiva frente à ausência de transformações profundas – até por que essa mesma coletividade se convenceu (ou foi convencida, não sei ao certo) de que as mudanças virão a despeito de sua responsabilidade –, do que (re)ajustes das formas de pensar e agir diante dos acontecimentos históricos.

Nessa vida de pós-pós-tudo, ninguém mais admite o ranço (depois de tanto pós- cria-se também o distanciamento histórico. Refugiados de modo cientificista na arte, já não há quem ouse voltar a falar em amor, engajamento e utopia (?).

Do amor

A despeito disso, sei que há, em Pernambuco, pelo menos, dois corações deveras piegas: que acreditam no amor como meio, engajamento como forma e na utopia como meta. Desde 2006, a revista Tatuí1 não é outra coisa senão uma construção diária de utopias. O lugar (im)possível sempre foi (e é) demarcado para além de nossa possibilidade; o amor, a força motor de nossos esforços; e o engajamento, a maneira de fazer que se juntem a nós outros corações – talvez não assumidos, mas igualmente piegas – que, de alguma forma, se dedicam ao projeto.

Há quatro anos atrás, o fanzine Tatuí era o lugar (im)possível que precisava ser construído. Não havia em Recife (e continua não havendo), um espaço onde pudessem convergir encontros e interlocuções de ideias acerca das artes visuais, em que as vozes fossem plurais e de valores equidistantes a despeito de suas origens/formações.

A cada novo projeto (edição dos números impressos e revista online), o lugar (im)possível se restabelece. Lançamo-nos ao desafio não só da captação de recursos, de engajamento dos (novos) colaboradores, de projetos editoriais mais aprofundados (sem deixar de ser experimentais), como também de ampliar a acessibilidade aos conteúdos e possibilidade de trocas diversas através de encontros interpessoais.

Do engajamento

Nesse sentido, a Tatuí, hoje, não se trata, apenas, de uma revista. É um projeto coletivo (apesar de ter suas ações catalisadas pelas editoras) articulado por uma rede de colaboradores que ao fomentar encontros para debates e oficinas, promove também, trocas simbólicas e de afeto. Tais trocas, por sua vez, alicerçam a possibilidade de novos lugares a serem construídos...

Através dessa rede, chegamos à Casa Tomada(SP). Para minha surpresa e alegria, descobri que por trás deste projeto há também dois corações 2 – será que posso dizê-los piegas? Porque não foi de outro jeito que, senão com amor, fomos recebidas. Tínhamos sido convidadas para uma tarde de debate 3 e, quando nos demos conta, já estávamos envolvidas pelo afeto.

Não à toa, continuei frequentando a Casa nos quatro dias que se seguiram. Uma vez ali acolhida, passei a desejar as trocas – e foram muitas. Era caminhar pelos cômodos do sobrado e não tardava encontrar preciosidades em forma de gente 4. Nesses poucos dias, meu repertório se ampliou enriquecidamente: sobre música, teatro, dança, arquitetura, cinema... Foram debates sobre arte, política, coletivos, subjetividade, editais e políticas públicas, publicações de arte, processos criativos, poesia...

Naqueles dias lá, entendi que, pelos pavimentos, os encontros edificam e potencializam o projeto Casa Tomada. Assim, os artistas e pesquisadores residentes, convidados das mais diversas áreas de atuação e visitantes espontâneos, alimentam a si mesmos e fazem alimentar os desejos de criação individuais e coletivos.

Daí, se pode imaginar que não havia outro jeito que não fosse o me render ao engajamento. A Casa Tomada, à semelhança da Tatuí, se (re)pensa e se (re)faz a cada novo projeto do programa de residência ateliê aberto; tanto quanto, costura, com afeto, sua rede de colaboradores para construir seus lugares (im)possíveis.

Da utopia

Sem os grandes modelos ideológicos5 , ficou um lugar por ali, adiante, ainda por ser demarcado e construído: sem palavras de ordem, ou pílulas teóricas anti-ansiedade coletiva.

1 Tatuí, revista de arte independente com versões online e impressa, surge em 2006 no Recife-PE como fanzine e atualmente encontra-se em seu oitavo número. Editada pelas pesquisadoras Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, a publicação se debruça sobre debates pertinentes à recente produção artística, em especial, a brasileira. Conta com colaboração de artistas, críticos, curadores, pesquisadores, educadores e escritores de diversas partes do Brasil. Suas edições – que já tiveram lançamentos em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro – são nacionalmente distribuídas em livrarias, bancas de revista e instituições culturais. A revista tem sido convidada a participar de eventos e debates tais como o SPA das Artes (Recife-PE), Seminário Internacional do Museu da Vale (Vila Velha-ES), Fora do Eixo (Brasília-DF) e Bienal do Livro (Recife-PE). Hoje contando com múltiplas fontes de financiamento como a Prefeitura do Recife, Governo do Estado de Pernambuco e FUNARTE (MinC), todo conteúdo produzido pela Tatuí está disponível em www.revistatatui.com.
2 Tainá Azeredo e Thereza Farkas, idealizadoras e coordenadoras da Casa Tomada.
3 O encontro fazia parte da agenda de encontros promovidos pelo programa de residência ateliê aberto #2
4 Os quatro dias na Casa Tomada me possibilitaram belos encontros com: Carlota Mazon, Carolina Mendonça, Caroline Valansi, Clara Crocodilo, Erica Ferrari, Habacuque Lima, Josefa Pereira, Luísa Horta, Mayra Martins, Mayana Redin, Rodrigo Castro, Rosana Mariotto, Tábata Makowski, Tainá Azeredo, Thais Graciotti, Thereza Farkas e William Lima.
5 Dos grandes modelos, só restou soberano o capitalismo.

Posted by Marília Sales at 5:37 PM