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março 23, 2010
Questão de Método por Antonio Malta Campos
Recentemente, tive uma discussão com amigos, um crítico de arte com formação em filosofia e um artista plástico que gosta de escrever e desenhar histórias em quadrinhos. Impropérios à parte, coloquei algumas questões relativas à Crítica de Arte, que considero pertinentes. Não posso dizer que meus amigos concordaram com o que eu disse. Eles colocaram outras questões, e também não posso dizer que concordaram entre si. O fato é que o Canal Contemporâneo estava escutando a conversa (pela Internet) e me pediu para escrever um ensaio sobre o assunto. Acabei escrevendo um texto que não reflete exatamente o que eu disse, mas chega perto. É incrível como podemos formular as mesmas questões de maneiras diferentes; depende do dia. De qualquer forma, aí vão minhas considerações.
De forma geral, a primeira abordagem a ser lida por interessados em Arte é a abordagem histórica. Comigo não foi diferente. Mas tenho um problema com essa abordagem, pelo fato de ser artista plástico. A História da Arte situa os artistas, as obras e os movimentos em períodos históricos bem definidos. Os períodos históricos estão irremediavelmente situados no passado. É como se tudo já tivesse sido feito. No meu trabalho artístico, porém, preciso começar de algum lugar. De algum lugar não: de algum artista, de alguma obra, de algum “estilo”, de alguma técnica. Começo copiando alguém. Aliás, todo mundo faz isso: é uma necessidade. No meu trabalho, portanto, violo o princípio básico da História da Arte, ao trazer para o presente o que estava fossilizado no passado. Uma maneira mórbida de colocar isso (minha preferida) é pensar a História da Arte como um cemitério: é só arrombar o portão e saquear os túmulos. Eu me vejo fazendo isso o tempo todo, e é ótimo. Recomendo. A vantagem de pensar a História da Arte dessa maneira (um cemitério) é que a narrativa temporal é substituída por uma estrutura espacial, onde fica fácil mudar a posição das peças, misturando tudo em função da necessidade criativa. Não deve ser surpresa, então, o fato de eu preferir a análise científica em lugar da abordagem histórica.
Nas Ciências Humanas existem abordagem que poderiam ser vistas como científicas. Um dos marcos iniciais dessa tradição de pensamento é a Línguística. Mais exatamente, o “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand de Saussure (primeira edição, 1916). É um livro póstumo, escrito por seus alunos, que tomaram notas das aulas. O que Saussure estuda é o funcionamento da língua (a linguagem que usamos para nos comunicar, não o músculo). Ele conclui que a língua é um sistema de oposições de signos linguísticos. Signos, por sua vez, são constituídos de significante e significado. Cito um trecho da página 139 da edição brasileira da editora Cultrix: “(...) na língua só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema. O que haja de idéia ou de matéria fônica num signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros signos. A prova disso é que o valor de um termo pode modificar-se sem que lhe toque quer no sentido quer nos sons, unicamente pelo fato de um termo vizinho ter sofrido uma modificação.”
A Linguística teve vários descendentes teóricos, entre eles a Semiologia e o Estruturalismo. A Semiologia é um termo cunhado pelo próprio Saussure, que previa, em função de seu Positivismo, uma disciplina que “estudaria os signos no meio da vida social” (Teixeira Coelho, “Semiótica, Informação e Comunicação”, Editora Perspectiva, pág. 17). Essa disciplina extrapolaria a Linguística, ao aplicar o método semiológico no estudo de signos de toda espécie. A Semiótica, que teve uma origem independente com Charles S. Pierce, se diferencia pelo uso de relações triádicas entre Signo, Interpretante e Objeto.
O Estruturalismo teve origem na Linguística de Saussure e em autores que desenvolveram essa teoria, como Roman Jakobson. No “Dicionário de Filosofia”, de Nicola Abbagnano (ed. Martins Fontes), há um pequeno resumo sobre o Estruturalismo. Cito trechos: “O Estruturalismo manifestou sua oposição a três frentes: historicismo, idealismo e humanismo. Contra o historicismo, que é (...) uma interpretação da realidade em termos de devir, desenvolvimento e progresso, [o Estruturalismo] afirma o primado da concepção (...) que considera a realidade como um sistema relativamente constante e uniforme de relações (...) considerando as mudanças temporais como transformações nas relações (...). Contra o idealismo, o Estruturalismo afirma a objetividade do sistema de relações (...). Contra o humanismo, o Estruturalismo afirma a prioridade do sistema em relação ao homem.”
Não sou um especialista em Estruturalismo, mas sei que autores como Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Lacan, Roland Barthes, Julia Kristeva, Derrida, Bourdieu, Althusser e Jacques Rancière estão relacionados a essa forma de pensar. Nos Estados Unidos, a teoria desenvolvida por estes autores recebe, às vezes, o nome pouco exato de “French theory”. O impacto dessa teoria nos meios acadêmicos norte-americanos foi considerável, principalmente durante os anos 60 e 70. No Brasil, aliás, não foi diferente. Eu mesmo estudei Semiótica na FAUUSP, na disciplina de Design. Na época não entendi muita coisa. Depois, lendo Umberto Eco na coleção da Editora Perspectiva, entendi um pouco mais.
Antes da Semiótica, havia lido “Art and Visual Perception” de Rudolph Arnheim. Gostei da Teoria da Gestalt imediatamente. Na introdução de seu livro, Arnheim explica que “gestalt”, em alemão, significa “forma”. Em 1890, no ensaio “Ueber Gestaltqualitaeten”, o psicólogo vienense Christian von Ehrenfels já havia demonstrado que a percepção de um dado elemento depende de sua relação com o todo. O ponto que Arnheim enfatiza é que para a Teoria da Gestalt, a visão não seria simplesmente um receber mecânico de estímulos visuais, e sim um ato criativo em si; “ver” seria organizar as sensações visuais em um todo estruturado e coerente. Disso decorre que os padrões de estrutura percebidos pelo olho seriam expressivos (a linha horizontal parece estar em repouso, a linha diagonal é dinâmica). Essa abordagem me interessou muito, bem como o estudo do signos e posteriormente o Estruturalismo. O que faltava era um autor que aplicasse isso na Crítica de Arte.
Em 1999, um pouco por acaso, descobri essa autora. Minha orientadora de mestrado, Vera Pallamin, havia trazido alguns livros dos Estados Unidos, entre eles “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”, de Rosalind Krauss (The Mit Press, 1986). Nunca havia ouvido falar de Krauss, conhecidíssima nos Estados Unidos. Comecei a ler... e era exatamente isso: uma crítica de arte de tendência estruturalista. Na introdução de seu livro, Krauss explica como entrou em contato com o Estruturalismo, e como essa abordagem entrou em choque com o historicismo de Clement Greenberg. Cito: “Quando, mais de vinte anos atrás, “Art and Culture” apresentou a obra crítica de Clement Greenberg para a geração de artistas e críticos que iria surgir nos anos 60, o que foi apresentado aos seus leitores foi um sistema através do qual o Modernismo artístico podia ser pensado. E este sistema, ou método – frequentemente referido, sem muita exatidão, como formalista – produziu um efeito muito maior do que as particularidades do gosto pessoal de seu autor. Greenberg, e isso é só um exemplo, não endossava o trabalho de Frank Stella, mas a lógica do sistema de Greenberg e a importância dada à planaridade (flatness) enquanto essência pictórica ou norma forneceram o quadro conceitual a partir do qual a primeira década da produção de Stella foi compreendida e aclamada. Profundamente historicista, o método de Greenberg concebe o campo da arte como atemporal e ao mesmo tempo em constante fluxo. Isto significa considerar que certas coisas, como a própria arte, a pintura ou a escultura, ou a obra prima, são formas universais e trans-históricas. Ao mesmo tempo, isso também é acreditar que a vida destas formas depende de uma renovação constante, não muito diferente do que ocorre com o organismo vivo. A lógica histórica desta renovação foi o que ensaios como “Collage” ou “American-Type Painting” tentaram desvendar (...)” (Pág. 1, tradução minha).
Krauss afirma em seguida que “praticamente tudo em “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths” está em contradição com esta posição [de Greenberg].” Krauss explica que o Estruturalismo rejeita o modelo historicista como meio de se compreender a obra de arte. Universos de investigação como “intenção estética” e “contexto biográfico”, e categorias como “obra de arte”, “autor”, “medium” e “obra do artista”, passam a ser questionadas em sua validade, já que pressupõem uma “unidade do organismo estético” que evolui no tempo.
Inútil dizer que eu me apaixonei imediatamente por esse tipo de abordagem. Mais ou menos na mesma época, comprei “Arte e Cultura”, de Greenberg (Ática, 1996). Resolvi dar a Greenberg o benefício da dúvida, e li com atenção seus conhecidos textos, como “Vanguarda e kitsch” (1939). Neste texto, que abre a coletânea, Greenberg afirma: “Surgem a ‘arte pela arte’ e a ‘poesia pura’, e o tema ou conteúdo torna-se algo a ser evitado como uma praga. (…) Ao desviar sua atenção do tema da experiência comum, o poeta ou artista se volta para o meio de seu próprio ofício. (…) Picasso, Braque, Mondrian, Miró, Kandinsky, Brancusi, até mesmo Klee, Matisse e Cézanne, tiram sua principal inspiração do meio no qual trabalham. A excitação de sua arte parece consistir acima de tudo em sua preocupação pura com a invenção e o arranjo de espaços, superfícies, formas, cores etc., excluindo tudo que não esteja necessariamente implicado nestes fatores.” Esse trecho mostra que Greenberg estava na direção correta, ao ver a Arte Moderna como uma experiência formal; ao mesmo tempo, há uma ênfase no “meio” que não explica completamente a diferença entre os artistas citados. De qualquer forma, li Greenberg com a mesma atenção com que li Krauss, e considero que ela explica melhor alguns episódios da Arte Moderna, com seu método estruturalista. Um desses episódios é de particular interesse para mim, pois envolve Picasso (o túmulo que mais saqueio). Trata-se das colagens cubistas. Greenberg escreveu sobre as colagens, e o texto faz parte da coletânea “Arte e Cultura”. Quando o li, achei-o confuso. É óbvio que Greenberg não entendeu o que estava olhando. Para ele, os diversos recursos empregados na colagem (jornal, papel pintado) seriam personagens de um drama plástico, pois a planaridade do meio estaria ameaçando a figuração cubista. Quando li essa interpretação, desconfiei imediatamente. Ela não faz sentido. Não há nada que indique que Picasso estava lutando contra a planaridade, ou que esta estivesse atrapalhando seus objetivos figurativos. O que Picasso sempre evitou foi a abstração. Realmente, em um momento do cubismo analítico, em 1910, sua pintura ficou praticamente abstrata. Existem motivos para acreditar que por mais “pura” que estivesse a pintura, Picasso estava insatisfeito com esse resultado. A colagem cubista, porém, surge em 1912, quando Picasso retoma a diferenciação figura/fundo que havia abandonado. É o início do cubismo sintético. A colagem não é uma expressão do problema, mas uma parte da solução. É na colagem que Picasso e Braque conseguem retomar a pintura figurativa, agora em novas bases. Pois é através da colagem que esses artistas exploram, com total liberdade, as propriedades do signo visual.
Rosalind Krauss escreveu bastante sobre a colagem cubista. Ela é a maior autoridade sobre o assunto. “The Picasso Papers”, livro de 1998, tem um capítulo sobre as colagens. Em “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”, existe um texto sobre Picasso, “In the Name of Picasso”, que foi escrito por ocasião da retrospectiva de Pablo Picasso no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1981. A primeira parte do texto é uma crítica às colocações que explicam a obra de Picasso em função da sua biografia. Na segunda parte, Krauss discorre sobre as colagens. Krauss explica que, para Saussure, o signo linguístico funciona a partir de duas condições básicas: a) a relação arbitrária entre significante e significado, onde o significante é a parte material do signo e o significado é um conceito imaterial; b) a definição da língua como um sistema de diferenças, onde os termos (signos) não tem significado fixo. As colagens cubistas seriam uma exploração sistemática das condições da representação figurativa do signo visual. Analisando a colagem Violino, de 1912, Krauss mostra como o mesmo jornal, com sua textura característica, é utilizado para compor os signos tanto do espaço em profundidade como da superfície opaca do corpo do violino. A diferença de posições dos recortes de jornal, um como parte do desenho do violino e o outro acima, à direita, funcionando como fundo para a figura do violino, faz com que o mesmo elemento significante tenha significados opostos: opacidade e transparência, figura e fundo.
Como artista plástico que sou, identificado com a forma arbitrária como Picasso manipula os elementos de suas colagens, não posso deixar de concordar com Krauss. Sua análise é perfeita, e se aproxima muito do que o próprio Picasso deveria estar pensando ao fazer as colagens. É claro que ele não precisaria conhecer a teoria de Saussure (publicada depois) para chegar nesse resultado; a manipulação dos signos visuais vinha se dando desde o início do cubismo, um pouco sob influência dos poetas, como Mallarmé, que haviam feito experiências semelhantes na Poesia.
No Brasil, há um autor que também escreveu sobre as colagens: Alberto Tassinari. Em “O Espaço Moderno” (Cosac&Naify, 2001), Tassinari tenta compreender a Arte Moderna por meio de uma conceituação do seu espaço: “Uma compreensão por negação do espaço da arte moderna sempre foi possível (…) como sendo não perspectivo. Mas se a destruição do espaço perspectivo pelo Modernismo foi habitual nas reflexões sobre arte moderna, o mesmo não se deu para um conceito positivo do seu espaço, que dissesse mais o que ele é e menos o que não é.” No capítulo “Generalizando a Colagem” Tassinari elabora a noção de “espaço em obra”. O espaço da obra não é reprodução de um outro espaço, como na perspectiva renascentista, mas é um espaço “se fazendo”. E ainda: “Um espaço em obra imita, por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra”. A colagem que Tassinari estuda é Guitarra, de 1913 (MoMA).
Na minha discussão amigável com amigos, muitos dos meus impropérios foram dirigidos a esse livro de Tassinari (nada pessoal, é apenas uma discussão conceitual). É um livro peculiar; é uma tese absolutamente original, que não tem precedentes na discussão internacional sobre Arte Moderna, até onde eu sei. O próprio Tassinari indica isso ao mencionar, em nota, que Yve-Alain Bois e Krauss, em “Formless: a User’s Guide”, discordam da abordagem que usa do conceito de “espaço”. Eu realmente não consigo entender como a idéia de “espaço” pode ser utilizada para explicar uma pintura ou uma colagem, que são superfícies planas. Em artistas como Richard Serra, o espaço é parte da obra; até aí eu vou. As tendências abstratas modernas fazem uso de elementos plásticos que incorporam o espaço; isso é um fato. Mas isso não significa que esse conceito possa ser indiscriminadamente utilizado para explicar algo como a “arte moderna” ou a “arte contemporânea”, que abrigam obras diferentes entre si. Para mim, nem a pintura renascentista, nem a moderna, fazem uso do “espaço”. O que elas trabalham é a representação figurativa do espaço, ou então a ausência dessa representação (abstração). Representação (signo) não deve ser confundida com objeto representado (objeto no espaço). Me parece que a teoria de Tassinari tem vida própria e se descola dos fenômenos que ela pretende elucidar. Ou então é um problema de conceituação. Ao escrever “Um espaço em obra imita, por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra”, Tassinari parece estar elaborando uma teoria do signo, pois “imitação” e “sinais” fazem referência a um sistema de representação. Espaço, aí, é signo.
Bom, que venham os impropérios.
Ótimo seu texto Antonio!
De acordo com o que li de Clement Greenberg, vejo que ele cria um método que visa a criação, o reconhecimento e a divulgação da Arte Moderna dos Estados Unidos. Quando adota Pollock, promove exposições, escreve, torna a cidade de NY o novo centro da arte mundial, trabalho executado com apoio do governo dos EUA, visto que a Europa em pós-guerra estava em decadência cultural. O governo dos EUA convidam e abrigam artistas e intelectuais europeus, que precisam sair da Europa, por causa de perseguições na Segunda Guerra. Greenberg direciona suas críticas e textos à realização de seu objetivo, sem qualquer pudor e acaba por realizar uma intenção central, lançar os EUA como centro produtor de cultura e arte no mundo.
Esta particularidade de C Greenberg faz com que ele seja estudado atentamente, pois sua obra mostra que os jogos de poderes se direcionam à manutenção ou à troca dos poderes estabelecidos. Supõe-se que o crítico de arte deva ter o máximo de isenção ao analisar obras e artistas e é preciso que o leitor busque diversas fontes, para estudar a arte, de acordo com diversos pontos de vista.
Tassinari fica confuso, pois tenta analisar a obra de arte sob a perspectiva estruturalista, onde o significante não está por um dado objeto já existente, antecipado ou de ficção, mas por um conceito abstrato; para a concepção estruturalista do signo, objeto e realidade são externos ao plano das idéias, dos conceitos.
O pragmatismo da semiótica peirceana pode se encaixar melhor à análise da obra de arte. O método de análise Semiótica de Charles S Peirce inspira a obra de Umberto Eco, Contribuições para a Doutrina dos Signos, 1974, inclusive.
Existem diversos jeitos de analisar a arte, talvez seja importante buscar o que conseguimos entender melhor, pesar pontos positivos e negativos, de um e de outro, para chegar a um resultado satisfatório.
Lenora, Tassinari não é estruturalista; Rosalind Krauss é. O Tassinari tem uma tese original, não é classificável em nenhuma corrente existente.
Posted by: Antonio Malta at março 23, 2010 8:15 PM